Após 47 anos, Maria localizou os irmãos

A vida de Maria Aparecida nunca foi fácil. Desde criança comeu o pão que o diabo amassou. Foi espancada pelo pai. Depois pelo primeiro namorado, um homem 26 anos mais velho, que a seduziu, a engravidou e, por último, a abandonou. Pressionada aos 15 anos, deu a filha recém nascida a uma desconhecida, em Curitiba. Viúva por duas vezes, ela agora tem dois únicos objetivos na vida: localizar os irmãos, sem notícias há 47 anos. E encontrar a filha, doada há 45. Esta semana, após matéria veiculada pela TRIBUNA, finalmente Maria encontrou os irmãos.

A história correu o país, até chegar a um grupo de buscas por desaparecidos na Internet. E foi lá que um dos irmãos, Carlos, constatou que a tal Maria era a irmã desaparecida. Imediatamente, as ligações tiveram início. E sim, as buscas de Maria chegaram ao fim. Agora, resta a ela, localizar Rosenilda Cardoso, a filha doada a uma desconhecida nas ruas do centro de Curitiba, há 45 anos.

Maria está prestes a completar 60. É a mais velha da casa. Depois dela vieram Carlos, 58, Valdecir, 56, José Donizete, 47 e Nildete, 45. Valdecir foi dado pela própria mãe, Maria Pereira da Silva, numa rodoviária do Paraná, logo após abandonar o marido, Antônio Cardoso Sobrinho, na década de 70. Relatos de Maria Aparecida, revelam que o genitor era um verdadeiro carrasco com a família. Sempre alcoolizado, batia, humilhava e ainda roubava o dinheiro da labuta como bóia fria da mãe.

Cansada da situação, Maria, a filha, aos 14, pegou uma trouxa de roupas e embarcou no carro de um desconhecido, ainda em Mamborê, onde residiam. Na mesma época foi a vez da mãe, Maria Pereira, abandonar Antônio. Certa da decisão, pegou os quatro filhos e sumiu até Campo Mourão. Mais tarde, embarcou novamente rumo ao interior de São Paulo. Lá, numa fazenda, ela conheceu outro homem, Francisco Luiz dos Santos. Ele ajudou a criar os três filhos, já que um deles, Valdecir, havia sido dado a uma desconhecida. “Numa rodoviária do Paraná, perto da divisa com São Paulo, uma mulher se encantou com Valdecir. Minha mãe, preocupada com o nosso destino, deu ele a uma mulher bem vestida. Nunca mais o vimos”, disse Carlos, um dos irmãos, que reside em Bauru.

Já namorando Francisco, Maria rumou até Bauru em 1980. Francisco conseguiu emprego na prefeitura local. A renda colaborou para criar os três filhos de Maria. Além deles, ela teve outras três filhas com o companheiro. Uma faleceu ainda recém nascida. Outras duas vivem – uma em Bauru, Janete, e outra na África. Maria viveu com Francisco até 2014, quando morreu dentro do banheiro da própria casa. Relatos indicam um ataque do coração. Francisco morreu este ano.

“Tudo o que eu queria era encontrar minha mãe. Está sendo muito triste saber de sua morte. Ao mesmo tempo estou feliz em encontrar meus irmãos”, revelou Maria. Enquanto ela buscava a família incessantemente, pras bandas de São Paulo os irmãos faziam o mesmo. “Sempre soubemos da existência da Maria. Minha mãe falava dela. Mas não tínhamos notícias de seu paradeiro”, disse José Donizete, um dos irmãos, que mora hoje em Jundiaí. Dos cinco irmãos, Maria mora em Campo Mourão. Carlos e Nildete, em Bauru. Já Valdecir – não se sabe se continua com o mesmo nome -, o paradeiro é incerto.

Como uma predestinação, Maria Pereira abandonou o marido, Antônio, para se livrar de sua violência. Motivado pelo álcool, o sujeito oprimia toda a família. A esposa apanhou diversas vezes, quase sempre, em frente aos filhos. Mas de nada adiantou fugir das agressões. Ao conhecer Francisco, percebeu com o tempo, o mesmo tormento: o álcool. “Minha mãe sofreu com ele. Além de beber muito, era agressivo e mulherengo”, revelou Carlos.

E foi pelo temperamento explosivo do padrasto que José Donizete e o próprio Carlos deixaram a casa, em Bauru, ainda aos 12 anos. Na verdade, a realidade vivenciada por Maria, anos antes, se iniciava mais uma vez. José Donizete deixou as asas da mãe ainda menino. Se aventurou por fazendas até se mudar, anos depois, a Jundiaí, São Paulo. “Eu me casei aos 15. Hoje tenho duas filhas moças. Tenho um bom emprego. E uma vontade enorme em conhecer Maria”, disse. Carlos, mesmo saindo da residência da mãe, permaneceu em Bauru, ao lado da outra irmã, Nildete.

Ela também é casada, possui filhos e atualmente trabalha numa escola fazendo ações de combate à Covid. De acordo com Nildete, o grande problema de Francisco era o álcool. Ele morreu em junho deste ano, com problemas decorrentes à bebida. “Minha mãe sempre falava da Maria. Ela queria encontrá-la. Mas não deu tempo”, disse.

A vida de Maria

A história de Maria Aparecida Cardoso começou em Manhuaçu, Minas Gerais, onde nasceu em 1961. Já aos seis meses, foi levada pelos pais até Borrazópolis, no Paraná. Lá, o casal teve outros quatro filhos: Carlos, Valdecir, José Donizete e Nildete. Família extremamente pobre, vivia da agricultura. “Minha mãe, eu e meus irmãos trabalhávamos na roça, desde muito pequenos. Mas bastava chegar em casa, meu pai apanhava todo o dinheiro e sumia ao bar. Passamos fome. Ele batia em todos nós”, lembrou.

Mesmo com tanto sofrimento, Maria Pereira Cardoso, a mãe, seguiu o destino ao lado do marido, Antônio Cardoso Sobrinho. Anos depois, já aos nove anos, Maria, a filha, se recorda em ter se mudado a Goioerê. Mais uma vez, todos continuaram “reféns” da violência do pai. Uma violência tão forte que ela preferiu não detalhar o passado.

Buscando novas oportunidades, sempre no campo, se mudaram agora à Mamborê. Lá, numa região conhecida como “Sete Peixeiras”, hoje “Riozinho” – o nome se deu em virtude da polícia, há tempos, encontrar sete peixeiras escondidas no mato -, a família se instalou. A vida continuava como sempre. Filhos e esposa trabalhando como bóias frias, enquanto Antônio, apenas aguardando a grana chegar. Os espancamentos e agressões morais chegaram ao limite.

Não suportando mais a situação, Maria, a filha, aos 14, acabou se entregando a um rapaz de 40 anos. Ele prometia levá-la até Curitiba. Oferecia uma nova vida. Enquanto isso, Maria, a mãe, também optou em chutar tudo. Abandonou o companheiro, pegou os quatro filhos, alguns poucos pertences e sumiu até Campo Mourão. Aquela foi a última vez que a filha viu o pai, a mãe e os irmãos. De acordo com ela, o pai foi morto a tiros, no Lar Paraná, há 26 anos. Muito possivelmente, consequência da própria violência e arrogância. Nada menos por esperar, principalmente a uma pessoa descrita pela própria filha como um verdadeiro canalha.

Na capital

Levada com o homem de 40 anos até Curitiba, Maria pensava que tudo mudaria. Ela sonhava em ter uma vida tranquila, sem violência, longe das tempestades vivenciadas em casa. Mas era tudo uma farsa. Caiu num verdadeiro golpe. O velho truque. E acabou pagando caro por isso. Como o pai, o sujeito também a espancou. A humilhou. Por fim, a engravidou e depois desapareceu. Mais tarde, Maria descobriu que o homem tinha família, era casado e possuía seis filhos.

Foi então que, ainda aos 15, sozinha na capital, encontrou emprego como doméstica. Ela dormia no trabalho. Era uma casa bacana, próxima ao Parque Barigui. Mas a patroa, mesmo vendo a barriga crescer, não aceitava a ideia de uma criança por perto. Mas não teve jeito, não. No mesmo ano Maria foi ao hospital e lá teve uma menina. Após receber alta, se encaminhou a um cartório e a registrou como Rosenilda Cardoso. “Alguns dias depois, a patroa disse: ou você se livra dessa criança ou senão vão as duas pra debaixo do viaduto. Não quero ela aqui”, lembrou Maria.

Ainda adolescente e muito pressionada, Maria fez o mais difícil. Levou a filha até o centro de Curitiba e, num ato impensado, desesperado, deu a criança a uma total desconhecida. “Eu não aceito o que fiz. Eu era uma criança. Mas hoje, não me perdoo. Infelizmente, não consigo voltar no tempo. Meu coração está destruído até hoje”, afirmou.

Após fazer o que, pelas leis naturais, não se faz, Maria retornou à casa onde trabalhava. E por lá permaneceu mais seis meses. Dotada de uma frieza incalculável, a patroa não se deu ao luxo em perguntar o que teria feito com a criança. Mas os obstáculos do destino não cessavam. Determinado dia, a patroa viajou. Para o seu azar, o marido ficou. “Passei a ser assediada por aquele velho. Tinha que me trancar. Correr. Pra não acontecer o pior, decidi botar um ponto final. E desapareci de lá”, disse.

Agora, sozinha e sem conhecer ninguém, o destino a levava à rua. Ou quem sabe, para baixo do viaduto, o mesmo “amaldiçoado” pela patroa. Desesperada, tentou se atirar à frente de um carro. Ainda desnorteada, se lembra de um braço a segurando. E de uma frase: “não faça isso. Tenha calma”. Chorando pelas ruas de Curitiba, ela visitou uma série de residências. Em todas, pedia clemência por um emprego. Na última, finalmente, foi ouvida. Era uma senhora que, vendo seu completo desespero, a convidou a entrar. Entre as lágrimas, Maria contou sua história e imediatamente, foi ajudada.

Lá, no Alto da XV, Passou a morar e trabalhar na casa de um policial e uma professora. Aprendeu a passar, lavar, e fazer uma boa comida. E mais que tudo, aprendeu que nem todos eram os seus inimigos. “O nome dela era Ana Maria. Foi um anjo enviado por Deus. Não só me ajudou, como salvou minha vida”, disse.

Volta ao interior

Aos 20 anos – 1981 -, Maria pediu alguns dias de folga e decidiu retornar a Mamborê. A ideia era procurar a mãe e os irmãos. A busca não prosperou. Mas foi o suficiente para reencontrar um antigo amigo: José Gonçalves. E ali, uma paixão brotou. Passadas algumas semanas, voltou à Curitiba. Pediu a conta e se embrenhou à Mamborê, definitivamente. O amor a chamava. E tudo deu certo. Se casou e com ele teve três filhos. Finalmente, as armadilhas da vida pareciam ficar fora de seu caminho. Anos depois o casal se mudou a Campo Mourão, onde a rotina dos dias seguia, pelo menos, até o ano de 2003.

Julho de 2003. Fábio, o caçula de Maria e José, se aproveitou de um descuido do pai e apanhou a arma. Então, ao lado de amigos, decidiu iniciar uma brincadeira estúpida. Era a tal roleta russa. Colocou uma bala no revólver e deixou a sorte agir. Não deu certo. Um tiro na cabeça pôs fim aos seus 17 anos. “Pedi ao médico que salvasse meu filho. Aquele foi um dos piores dias da minha vida. Ele morreu”, lembrou.

A angústia do pai foi tanta que, menos de cinco meses após a tragédia, ele não resistiu e morreu. Vítima de um infarto fulminante. “Ele já vinha se sentindo culpado pela morte de Fábio. Via um homem destruído por dentro. Ele morreu se sentindo culpado”, disse Maria. No mesmo ano, ela perdeu um filho e o marido.

Mas não há nada que segure as voltas da Terra em torno do sol. Passados nove anos, a viúva Maria conheceu Ivo. Segundo ela, um sujeito destemido, trabalhador. A relação caminhava de vento em popa. Juntos, traçaram planos em se casar. Tudo ia bem. Mas num dezembro de 2012, numa festa de confraternização entre vizinhos, uma treta aconteceu. Ivo não tinha nada a ver com a quizumba. Mas sempre camarada, decidiu agir. E se pôs a separar os valentões. Restaram três disparos contra a sua cabeça. Caiu morto, aos pés de Maria. Mais uma vez, a tragédia atravessava seu caminho.

Maria é uma mulher guerreira. Aprendeu a ser forte com as pedras atiradas pelo destino. Não sabe ler nem escrever. Frequentou pouco a escola. Durante a entrevista, narrou fatos impactantes. Quase, indescritíveis a estas páginas. E lembrando por tudo o que passou, desabou em choro.

Ela luta agora para tentar localizar o próprio passado. De alguma forma, se sente preparada em buscar o paradeiro da filha, Rosenilda Cardoso, que hoje tem 45 anos. Para a sua tristeza, não verá mais a mãe, morta em 2014. Mas ainda resta a felicidade em reencontrar os irmãos. E isto, está prestes a acontecer. Em alguns dias, ela será levada até Bauru. A porta fechada por 47 anos, finalmente, será aberta e os cadeados, destruídos.

Serviço

Se você conhece Rosenilda Cardoso, 45 anos, ou alguém com outro nome que possa ser ela, ligue para (44) 99947-6400