A história de Maria, que levou uma facada no olho e, como um milagre, nada aconteceu

Campo Mourão, 25 de julho, quatro horas da manhã. Na Central Hospitalar, uma jovem de 22 anos chega ferida em uma maca, junto a equipe do Samu. À surpresa do corpo clínico, nota-se entre os olhos e a testa, uma faca de aproximadamente 30 centímetros, cravada em seu rosto. A lâmina estava com dois terços, face adentro. Nem mesmo os profissionais de saúde se contiveram. Era uma cena chocante. De intensa comoção. E se perguntavam o que de tão mal a moça fizera. A jovem em questão era Maria – nome fictício. Minutos antes, estava em uma das escadas, na penumbra da noite e sob a marquise de uma empresa, comercializando o próprio corpo.

Era uma noite de inverno, comum a tantas outras anteriores ou subsequentes. Naquele momento, além de Maria, outras pessoas ao redor. Ela vive já, há alguns anos, em situação de vulnerabilidade social. Na gíria popular, uma invisível. As escolhas feitas apenas por ela mesma, a levaram ao vento. E por consequência, à escuridão.

Mas naquela noite, foi vítima de uma tentativa de homicídio – hoje, pela lei, feminicídio. De acordo com testemunhas, um motoqueiro teria chegado ao local e perguntado sobre a mesma. Ao identificá-la, se aproximou. E, sem dó nem clemência, cravou a faca praticamente dentro de um dos olhos. Em seguida, subiu na motocicleta e desapareceu.

A polícia e o Samu foram acionados. E Maria foi encaminhada ao hospital. Lá, devido a tamanha complexidade do ferimento, decidiram que, o melhor, era levá-la a um hospital de Maringá. A jovem chegou ainda na terça, 25 de julho. Passou por cirurgia e teve a faca retirada. O objeto foi cravado de cima para baixo, não atingindo a região cerebral.

No entanto, ao ver a cena, chegou-se a pensar que, no mínimo, ficaria cega. “Eu escutava os médicos dizerem que eu poderia não sobreviver. Eu estava com muito medo”, relatou Maria. Mas não. Como a um milagre, Maria não teve nenhuma lesão que a comprometesse. Ela permaneceu internada até o dia 27. Quando decidiu, mais uma vez, por escolhas próprias, “fugir” do hospital. Naquela manhã, ainda com tubos da traqueostomia, Maria ganhou a rua. E, em seguida, conseguiu carona com um caminhoneiro. “Ele me disse que era de Campo Mourão. Então me trouxe”, disse ela.

A jovem é atendida há anos por um pastor da cidade. Ainda na rua, ganhava marmitas calorosamente feitas pela entidade. Então, pelo menos duas vezes por semana, ele a via. Quase sempre no mesmo local, aos fundos do posto Guapo. “Quando a conheci já era dependente do crack. Estava muito magra. Mas depois de algum tempo disse que tinha se internado. E parado de usar. Acho que era verdade, porque estava melhor. Com mais peso”, lembrou.

E, segundo ele, ali onde foi esfaqueada, é o ponto escolhido para também desenvolver seus programas sexuais. Uma soma simples de matemática: dinheiro para bancar a droga. No entanto, mesmo a conhecendo de longa data, o pastor nada sabe de sua vida. Simplesmente porque ela nunca desejou se abrir. Uma simples regra das ruas.

Maria

Maria nasceu em 2001. E foi criada até os 16 pelo pai, no litoral de São Paulo. A mãe, segundo ela, desapareceu ainda quando criança. Em 2017, mais uma vez por decisões próprias, decidiu experimentar o mundo das drogas. Entrou e nunca mais saiu. E, tomada pela ilusão de uma falsa liberdade, deixou as asas do pai. Para sempre. “Nunca mais o vi. E soube que o mataram. Meu pai já era”, disse ela.

Em 2018, Maria começou a namorar. Então recebeu o convite para ir até Maringá. E lá, a vida desmoronou. De vez. O sujeito com quem se relacionava iniciou os planos no tráfico. E com a concorrência no seu pé, colocou um ponto final. Então fugiram de lá. “Ele e eu pegamos carona e paramos em Ivailândia. Era uma noite de muita chuva. Mas quando vi, ele tinha desaparecido. E ainda levou todas as minhas coisas”, disse.

Sozinha e na chuva, Maria entrou em desespero. Eis que aparece, à sua frente, o ditado, “a ocasião faz o ladrão”. “Eu não tinha pra onde ir. Não sabia onde estava. Olhei pra uma casa, o portão aberto. E lá dentro, uma moto, com o capacete e a chave na ignição. Pensei, vou embora daqui. Mas deu tudo errado”, disse. Moradores logo descobriram a tentativa. E os planos acabaram ali mesmo. Caiu em cana, e ficou presa.

Um ano depois, já em 2019, Maria adotou as ruas de Campo Mourão. Ela jamais teve uma casa. Sempre foi sozinha. Mas naquele ano, iniciou uma relação com outro rapaz, que durou até 2022, quando foi preso. Desde então, viciada e vivendo como uma ilha, optou em se prostituir. “Isso aqui é muito pesado. Não quero isso pra sempre. Mas a droga não deixa que eu saia desse lugar”, afirmou.

Mesmo ainda sendo bastante jovem, Maria relatou ter visto coisas demais. Ainda em Maringá, usando drogas em uma das ruas, presenciou a ação de assassinos. “Acho que foi outro milagre. O cara matou dois e atirou em mais duas pessoas. Eu estava lá. E nada aconteceu comigo”, disse, ainda assustada com o que vivenciou. Não é exagero dizer que, de certa forma, Maria possui uma espécie de corpo fechado. “Penso que Deus tenha um propósito maior pra mim”, disse.

Hoje, Maria mora de favor numa casa que não sabe nem de quem seja. E faz os programas para o seu sustento. A grana é pouca. E é utilizada à compra de drogas e cigarros. Por muitas vezes, deu preferência ao vício, a própria fome. “Já fiquei uma semana sem comer. Simplesmente, porque usava a grana à droga”.

25 de julho

Na noite em que foi esfaqueada, Maria disse que fazia ponto, atrás do posto Guapo. E teria recebido o convite para sair com um homem. Ele teria pago adiantado. Mas estaria fora de si. “Ele usou muita droga e começou a ficar agressivo. Queria me amarrar na cama. Fiquei com medo. Então o deixei lá”. Horas mais tarde, ao seu espanto, o mesmo homem chegou de moto e, com uma frieza descomunal, retirou a faca e a cravou em seu rosto.

Segundo ela, o sujeito está preso. “Há alguns dias eu fui procurada pela polícia e levada até a delegacia. Lá, entre oito suspeitos, reconheci o agressor. Tomara que ele fique muito tempo preso”, disse. Maria afirmou que quer parar com as drogas e, como consequência, a prostituição. Mas revela que o poder da química é mais forte que o seu controle. Maria continua nas ruas. Em tempo: ela não quis ser identificada pela reportagem.