A redenção de Maria

Maria nasceu em La Dorada, Colômbia. Está com 47 anos. Mas agora, ela renasceu. E pela terceira vez. No enredo da vida, passou por uma realidade digna dos livros de ficção. No próprio país, fugiu. Se escondeu para não morrer. E perdeu tudo o que conquistou. Anos depois, já na Venezuela, lutou, mais uma vez, agora, para ter o que comer. Faminta e vendo o caos do país, assolado pelo sistema do presidente Maduro, largou tudo. Mais uma vez, abandonou bens para se refugiar, desta vez, no Brasil. Maria está em sua terceira vida. Foi derrubada nas últimas duas. Aos 47, a mulher guerreira, parece ter vivido 100. Ela lamenta. Mas está disposta a recomeçar novamente. Trabalhar, é tudo o que deseja.

Era 2001. Aos 27, na Colômbia, Maria trabalhava com confecções. Fazia as próprias roupas para vender em sua loja. Não era rica. Mas vivia decentemente. Com a dignidade herdada dos pais, fazendeiros. Já tinha Andrea, a filha, na época, com oito anos. Casada, acabou se divorciando. E lutava sozinha, levando adiante, a esperança em dias melhores. 

Mesmo com o fim da era Pablo Escobar – ele morreu em 1993 -, a Colômbia ainda passava pela constante presença do narcotráfico. Mas agora, com paramilitares atuando junto a narcotraficantes. “Naquela época, meus dois irmãos foram confundidos com delatores do tráfico. Eles foram sequestrados, mortos e esquartejados. Por fim, o que restou, foi jogado ao rio. Nunca pudemos fazer o velório”, afirmou Maria. Os irmãos possuíam 40 e 18 anos.

A     tragédia não só abalou, como acabou com a vida de toda a família. Também jurados de morte, Maria, a filha, seus pais e outros familiares, tiveram que largar tudo e se esconder. Deixaram o comércio, a fazenda, casa e outros bens. Tudo foi abandonado. Era necessário garantir apenas a própria vida. De certa forma, manter a sobrevivência. E assim o fizeram. 

Ao lado da filha, Maria fugiu até a cidade de Pereira, também na Colômbia. Lá, permaneceu escondida, mas trabalhando, de forma cautelosa. O medo era constante. Mas acontece que o tráfico é poderoso. Numa manhã, em 2003, em sua ausência, homens invadiram a casa. Lá estava apenas a filha e um cunhado – com o filho de apenas um ano. Fortemente armados, eles fuzilaram o seu cunhado. E o pior: em frente a Andrea, 11, e o bebê, 1. “Eu jamais vou esquecer daquela cena. Depois que o mataram, eles correram. Eu fiquei ao lado do meu tio, em meio ao sangue escorrido”, conta Andrea, hoje, aos 28 anos.   

A notícia caiu como uma bomba. Novamente, pavor e terror haviam retornado. Ao mesmo tempo em que os fantasmas voltaram, Maria comemorava o fato da filha e do sobrinho, sobreviverem. Com o terceiro membro da família assassinado – e eles não sabiam os motivos da perseguição -, Maria colocou um basta na Colômbia. Arrumou as malas e fugiu para a Venezuela. “Eu não conseguia mais viver ali. Tinha que garantir as nossas vidas”, revelou. 

Venezuela
Era 2005, quando Maria atravessou a fronteira, como refugiada, à Venezuela. Com uma única mala, chegou a um lugar desconhecido, mas pronta a recomeçar, pela segunda vez. Lá, distante da violência do narcotráfico, pôs em prática o que sabia: confecção. Ao lado de outros familiares – também refugiados -, faziam carteiras e cobertores. A produção aumentou, chegando a fazer mil carteiras por semana. A família revendia os produtos a muitas lojas da cidade. E, como consequência direta, a “plata” – dinheiro -, só aumentava.  

“Mais uma vez, recomecei do zero. Mas, trabalhando, iniciamos a prosperidade de novo. Tudo ia bem, até Hugo Chavéz morrer, e dar lugar a Maduro”, disse. No poder desde 2013, Nicolás Maduro impôs um amargo sistema de governo à população. Os negócios de Maria, assim como toda a economia do país, desandaram. Sua presidência, até hoje, é marcada pelo declínio socioeconômico venezuelano, com acentuado crescimento da pobreza, inflação, criminalidade e fome. A oposição sustenta a tese que o país é governado por um ditador. Grande parte da população pede seu afastamento. Mas sem sucesso. O sujeito continua no poder.

Aos comandos de Maduro, a Venezuela foi ao caos. E, junto a ela, Maria. Com o “navio” desgovernado, ela virou náufraga. Agora, não tinha mais material para continuar a trabalhar. Tudo faltava. A inflação arrasou a economia. O dinheiro não valia mais nada. “Chegou ao ponto do salário mínimo valer US$2. E um quilo de leite em pó, custar US$6”, lembrou ela. 

Com os negócios dando errado, principalmente, devido a desvalorização do dinheiro, Maria afundou, de vez. Agora, via um país assolado pela fome, escassez de produtos e inflação gigantesca. Vivendo em meio ao caos, ela ainda continuava a produzir algumas roupas, mas em casa. A pequena produção revendia a mineiros. Próximo a sua cidade havia uma mina de ouro. O pagamento era em dólar ou ouro. “Mas desisti de vender. Quando retornei de carro, após as vendas, guardas me pararam e tomaram o dinheiro”, revelou.

Em 2016, ainda na Venezuela, ela teve notícias que um homem preso, na Colômbia, havia confessado a morte de seus dois irmãos. “Ele revelou que havia os matado por confundi-los com outras pessoas. O assassino também pediu perdão a nossa família”, lembrou Maria. Embora aliviada com a descoberta, o fato não trouxe os irmãos de volta. Ao contrário, o que sobrou dos corpos, jamais foi encontrado.

Não bastasse o sofrimento de tentar trabalhar, com o dinheiro nada valendo, Maria viu o sistema de saúde venezuelano acabar. Segundo ela, lá, o governo mantinha uma espécie de SUS brasileiro. Mas ele foi extinto. “Agora, quem precisar de uma simples consulta, precisar ter em mãos US$100 – R$560 na moeda brasileira”, disse. Fora isso, a fome atingia classes sociais antes, privilegiadas. “Vi muita gente tendo que comer restos de lixo. E não era raro saber de pessoas se alimentando de ratos, gatos e iguanas”, afirmou. 

Maria também lembra de quando chegou ao país. De acordo com ela, por volta de 2005, para encher o tanque do carro com gasolina, a população gastava o equivalente de R$5. Agora, o litro está custando cerca de US$3, ou R$17. “Era quase de graça a gasolina. Afinal, a Venezuela mantém uma das maiores reservas de petróleo do mundo. Infelizmente, agora, até isso passou a ser inviável”, disse. 

Brasil
Sem mais expectativas em viver na Venezuela, ela pediu a filha, em 2019, que deixasse o país e buscasse o Brasil. Já, aqui instalada, Andrea ligou a Maria e pediu que também viesse. Então, com apenas uma mochila nas costas, Maria, o filho de dez anos e um companheiro, deixaram imóveis e carro, mais uma vez, e rumaram ao Brasil. Com receio de serem barrados pela polícia brasileira, decidiram andar oito horas através do mato e montanhas. A ideia era alcançar a “terra brasilis” e depois, conquistar o pedido de refúgio. 

“Foi muito dolorido fazer o percurso. Tive que ser arrastada pelo meu amigo. Achei que não conseguiria atravessar aquela montanha”, disse Maria. Ao mesmo tempo em que chorava pelo cansaço, ajudou outras pessoas, que também seguiam o caminho. Por diversas vezes, ela e o filho rastejaram. Uma jornada quase impossível de fazer. Mas o objetivo era maior. A meta era escapar da fome, das injustiças. E ela conseguiu. 

A chegada por Boa Vista, em Roraima, aconteceu entre 31 de dezembro de 2020 e primeiro de janeiro, de 2021. Maria estava aliviada. Afinal, no Brasil, a esperança recomeçava. Sabendo que a filha estava residindo no Sul, ela correu o trecho ao lado do filho, até encontrá-la. Hoje, moram na mesma cidade. O amigo de Maria ficou em Boa Vista, onde conseguiu emprego. Andrea, casou no Brasil e está grávida de sete meses. Em breve, Maria terá a primeira neta. Uma brasileirinha. Motivos a mais para retomar sua terceira vida.

A chegada ao Brasil foi, imediatamente, como uma salvação. É que, logo ao chegar, o filho de 11 anos, com fortes dores na barriga, teve que ser levado até um hospital. Constatada inflamação no apêndice, o menino passou por cirurgia. E foi salvo. “Se estivesse na Venezuela, não sei o que faria. Mas aqui, no Brasil, fomos acolhidos pelo sistema de saúde. Agradeço muito pelo que fizeram, e de graça”, contou Maria. 

A mulher de cabelos morenos e traços latinos, também possui olhos negros, brilhantes. A cada palavra mencionada por ela, ainda em espanhol, seu olhar refletia esperança. Ela sabe o tamanho de sua força. E tem certeza que aqui, irá prosperar, mais uma vez. Sua própria redenção. Uma igreja está ajudando a família. Maria mora em uma pequena casa e vive no aluguel. Comida e móveis foram doados. Mas agora, um emprego é mais que necessário. Sua dignidade, depende disso. É como diz a tatuagem no braço da filha: “A vida tem que seguir”.