Clineu e a eterna virtude da simplicidade

O homem “baixinho”, sempre gentil, sentado em sua cadeira, próximo ao caixa de sua quitanda, no centro de Campo Mourão, definitivamente, não é somente um comerciante. Honesto trabalhador desde criança, cresceu desejando ser médico. O destino não deixou. Ao invés disso, cursou outras duas faculdades. E se transformou em administrador e professor. Hoje, aos 73, Clineu Uehara olha o passado e vê uma vida inteira de suor. Correria. E, em meio a tudo isso, algumas perdas. E muitas conquistas. A bem da verdade, o “baixinho” em questão, é um gigante.

Clineu nasceu em Andradina, interior de São Paulo, em dezembro de 1950. É o caçula de 11 irmãos. Os pais nasceram no Japão. E chegaram ao Brasil ainda adolescentes, “jurados” a se casarem. Naquela época, a sociedade japonesa ainda mantinha costumes assim, com matrimônios “acertados” entre algumas famílias. E, após se unirem, viraram lavradores das terras brasileiras.

Impondo uma rígida disciplina, Clineu foi criado, digamos, no laço. Desde pequeno já era “intimado” a colaborar na agricultura familiar. Colhia verduras, frutas e, também, ajudava nas feiras. Ao mesmo tempo, estudou. E cresceu com a ideia de um dia, se tornar médico.

Mesmo nunca faltando nada à mesa da família, o dinheiro também não sobrava. E Clineu passou toda a sua infância e adolescência, tendo vontades nunca saciadas. Como por exemplo, ir ao cinema. Naquela época, os amigos saiam da escola e se dirigiam à porta do cine local. A maioria ganhava um trocado dos pais e adentrava. Clineu, não. Ficava beirando o cheiro da pipoca. E, sem grana, voltava à sua casa.

Após concluir o segundo grau, ainda em Andradina, pediu ajuda de um irmão. E rumou à Curitiba. Lá, em 1968, permaneceu um ano fazendo cursinho. O sonho era alcançar a medicina. Tentou a Federal. Não conseguiu. Então viajou até o Rio Grande do Sul. Lá, um outro vestibular poderia dar certo. Não deu.

Clineu viajou com tão pouco dinheiro que, lá chegando, a grana acabou. Ele então bateu palmas em algumas casas. A ideia era vender o pequeno rádio que havia levado. Após receber o não em todas, o vendeu em uma loja de consertos. Agora, com mais um pequeno valor no bolso, o objetivo era se alimentar. E para isso, comprou pães e bananas. Era o que dava. O popular “Xis Mico”. Comeu tanto que hoje passou a ficar distante das bananas. Pelo menos para ingeri-las. Para vende-las, tudo certo.

Ainda fazendo cursinho em Curitiba, Clineu se apaixonou pelo Coritiba Futebol Clube, o “Coxa”. Mas ali, lembrando os episódios do cinema de sua infância, também não tinha dinheiro para assistir aos jogos. Mesmo assim, ia até o Alto da Glória e permanecia lá, estaqueado, do lado de fora do estádio, torcendo pelo time e, por um milagre dos portões serem abertos. E o milagre acontecia. Já nos momentos finais da partida, eles se abriam para a multidão sair. E era por ali, que Clineu subia as arquibancadas. Sua êxtase em comemorar as vitórias. Mesmo que visualizasse apenas o juiz encerrando o jogo.

Clineu sempre foi um homem simples. Ao herdar os ensinamentos dos pais, jamais deixou as raízes do campo. E acabou por manifestar em suas atitudes, a valorização da humildade. Quem o conhece, sabe disso. E foi desta maneira que, após não passar no vestibular, retornou às suas origens. De volta ao interior de São Paulo arrumou emprego na Usina Hidrelétrica de Urubupungá, às margens do Rio Paraná. Lá, virou laboratorista. Fazia testes com a dilatação de concreto. Ficou um ano e meio. Mas acabou dispensado.

Com o sonho em ser médico, pediu agora, a ajuda de uma irmã. E voltou à Curitiba. Então em 1971, em outro vestibular, mais uma vez ficou distante de adentrar à medicina. Mas passou na segunda opção: Licenciatura em Ciências. “Eu nem sabia o que era esse curso. Mas fiz. E acabei professor, com muito orgulho”, disse.

Como a grana era curta, Clineu arregaçou as mangas e arrumou um trabalho na Serpro. Um braço do governo federal, cujo objetivo era o processamento de dados. Ao concluir o curso na Federal do Paraná, durante dois anos, não satisfeito, tentou outro: Administração de Empresas. E passou.

Durante quatro anos, Clineu estudava pela manhã. Trabalhava à tarde. E, à noite, iniciava como professor em colégios da capital. E foi nesta correria que conheceu uma jovem mourãoense, de nome Mitika. A moça também estudava em Curitiba. Após olhares, conversas e convites para sair, começaram a namorar. Nunca mais se largaram. E, com as juras de amor, se casaram em 1978, também em Curitiba. Da relação tiveram dois filhos. Mas trabalhando e cuidando dos pequenos, a vida ficava difícil. A quem pedir socorro?

Clineu e Mitika no dia do casamento, em 1978

Campo Mourão

Entre 1986 e 1987, Clineu e Mitika arrumaram as malas e, ao lado dos filhos, atracaram em Campo Mourão. Na cidade, as crianças teriam os braços dos avós, os pais de Mitika. Clineu passou a plantar verduras e legumes em estufas. Por certo, a primeira estufa de tomates de Campo Mourão foi dele.

Ao mesmo tempo em que planejavam viver da venda de hortaliças, os dois conseguiram emprego como professores. Mitika dava aulas pela manhã. Clineu, à noite, no Marechal Rondon. E tudo começava a dar certo. Eles também compraram uma velha Kombi. E com ela, vendiam as leguminosas, de porta em porta. Clineu saia de manhã e de tarde. Já, a esposa, a noite. Os dois não paravam de trabalhar.

Como a fama corria solta, principalmente, em virtude da qualidade das hortaliças, a população começou a pedir que montassem um ponto fixo de venda. E eles acreditaram na ideia. Na Rua Francisco Albuquerque alugaram uma sala comercial, num prédio da família de Mitika. O ano era 1988. Nascia o Fruto Maduro. Até hoje, a quitanda é referência de qualidade na cidade. Muito em decorrência das exigências de Clineu e Mitika.

Hoje, Clineu continua sentado em sua cadeira. Mas não tem mais a ajuda da esposa. Ela morreu em 2018, vítima de uma infecção, consequência do diabetes e de problemas nos rins. Ele também está distante dos filhos e dos netos, a quem tem uma verdadeira paixão. Letícia, 37, virou arquiteta, e mora em Curitiba. Clineu Julien, aos 40 anos, reside em Florianópolis, onde atua como perito criminal. Mas mesmo assim, ele nunca está sozinho, não.

Companheiros e futebol

Pela obra construída, pelas atitudes, Clineu está cercado por bons companheiros. Colaborador desde 1994, Éverton continua ao seu lado. Hoje é o seu braço direito. Ele também foi aluno de Clineu. E nunca se esqueceu dos aprendizados enquanto estudante. “Ele era o professor bombom. Quando alguém tirava nota 100 nas provas, ele presenteava com um bombom. Sempre foi assim”, lembrou. Na verdade, Éverton possui uma verdadeira adoração por Clineu. Não bastasse o conhecer como professor, como funcionário, passou por muitas aventuras ao seu lado.

Everton conta que Clineu sempre teve uma paixão assombrosa pelo futsal. Desde que adentrou à quitanda, os dois começaram a organizar o time da “firma”. Clineu alugava quadras de futsal e, ainda, levava lanches e refrigerantes. Everton convidava os boleiros. Após quase um ano de “peladas”, montaram um time. E que time.

Levando o nome de Fruto Maduro, a equipe ganhou quase tudo o que disputou, incluindo dois torneios paranaenses. Mas tinha um problema. A maioria dos jogos acontecia nas tardes de sábado. Horário em que a quitanda estava cheia. Sempre cheia. Mitika não deixava Clineu sair, ainda mais, se fosse para ver os jogos. Então ele arrumava um jeito.

“Teve uma vez que ele mentiu que ia para a chácara resolver um problema. Naquele dia, a quitanda estava cheia. E era uma final que o nosso time jogaria. Eu estava na quadra, quando escutei uns gritos conhecidos. Era ele. Fui lá e perguntei: o que é que o senhor tá fazendo aqui”, lembrou. Depois do episódio, Mitika ficou um ano sem falar com Everton. “Ela achava que eu tinha carregado ele pra lá”. Esta não foi a única vez que Clineu, digamos, fugiu do trabalho. Ele deu outras escapadas. Mas sempre com o intuito de assistir aos jogos do time. E a bem da verdade, não fez mal a ninguém.

Clineu e Everton

Desespero na estrada

Numa madrugada de 1996, Clineu e Everton saíram de Campo Mourão rumo a Seasa de Maringá. Lá, compraram o que necessitavam e já, por volta das seis da manhã estavam na estrada. Próximo a ponte do Rio Ivaí, trânsito parado. Clineu achou se tratar de um manifesto de caminhoneiros e ordenou que Everton parasse, em fila. Mas não era nenhuma paralisação. Era um cenário de guerra. Era real.

Pouco à frente, uma quadrilha fortemente armada assaltava um carro forte. Munidos com fuzis e até granadas, abriram o veículo, roubando todo o dinheiro. “Estávamos desesperados. Ouvíamos os tiros. E não tínhamos pra onde fugir. Foi muito tenso”, lembrou Everton. Segundo ele, uma outra Kombi, de Campo Mourão, sem saber o que ali acontecia, foi ultrapassando os carros. “Tentamos avisar pra parar. Mas não escutou. E seguiu em frente. Em alguns minutos, retornou. E com a frente da Kombi cravejada de balas”, disse.

Os bandidos fugiram, deixando um rastro de medo pelo caminho. Assim que a polícia foi acionada, a pista foi desbloqueada. Clineu e Everton chegaram a Campo Mourão, ilesos. E com uma baita história no curriculum.

Clineu

Tanto representa à sua cidade, Clineu foi homenageado em 2016 como “Guerreiro do Comércio”. Um título oferecido pela Fecomércio. Com premiação entregue em Curitiba. Hoje, aposentado como professor, ele continua sentado em sua cadeira, lá no cantinho da quitanda. Faz os pedidos, atende ao telefone. Às vezes repassa os fiados e vê o montante a receber. “Tenho um carro zero quilômetro a receber, só em fiado”, brincou, rindo.

É difícil ver Clineu nervoso. Mas há quem já tenha visto. Mesmo assim, isso não importa. Trata-se de um gentleman. E isso é demonstrado no dia a dia. Seja no tom de voz com clientes. No fino trato com seus colaboradores. E mesmo tendo cumprido o papel de marido, pai, professor e patrão, ele não se cansa de continuar a eterna luta como comerciante. Um dos funcionários relatou a este repórter: “Eu nunca vou conhecer alguém mais honesto que ele”. A simplicidade está nas atitudes, que honram o caráter.

Durante entrega do troféu de Guerreiro do Comércio