Família reúne relíquias desde telefonia brasileira à documento do Reich

Era um final de tarde comum em Campo Mourão. A TRIBUNA fazia uma simples entrevista na residência de um casal, na área central. Lá, entre tantos objetos antigos, alguns datados de até 150 anos, é mostrado algo impressionante. De arrepiar. Uma espécie de carteira de trabalho, confeccionado pelo Reich alemão. Ele pertencia a Janina Kiwel, prisioneira de um dos tantos campos de concentração mantidos pelos nazistas na década de 1940. Janina era mãe de Antônio Kiwel, o dono da residência.

A bem da verdade, Antônio e a esposa, Ivonete, mantêm uma espécie de museu particular. Casados há 30 anos, passaram a gostar das mesmas coisas, em especial, relíquias. E mostrando diversos objetos ali mantidos, de repente, surge o Arbeitsbuch fur Auslander. Chamado de livro de exercícios, era um documento onipresente no Reich a partir de meados da década de 1930.

Arbeitsbuch fur Auslander: Chamado de livro de exercícios – Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior

Na época, todos os funcionários alemães tinham que apresentar um desses em seus locais de trabalho. Ou seja, sem a carteira de trabalho, ninguém podia ser empregado. Trabalhadores civis forçados também o recebiam. No início, era o mesmo dos alemães. No entanto, a partir de maio de 1943 houve um “livro de trabalho para estrangeiros”. Os cartões de pasta de trabalho associados eram usados para gerenciar e coordenar a chamada implantação do trabalho. É o que os nacional-socialistas chamavam de intervenção estatal no mercado de trabalho.

Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior

No caso da polonesa Janina, o documento foi emitido para a sua “estada” num campo de concentração onde, ao invés de direitos trabalhistas, era obrigada a trabalhos forçados. Antônio não têm orgulho em mostrá-lo. O papel reflete muita dor. Ainda mais por sua mãe que, além de ter tido um filho no local, Jorge, teve que escondê-lo até que conseguisse fugir.

Reliqueiros

Antônio nasceu em 1952, em Campo Mourão. Aos 18 começou a trabalhar na Sociedade Telefônica do Paraná, que se localizava em frente aos Correios da Rua Francisco Albuquerque. Mais adiante, a empresa se transformou em Telepar, sendo vendida em 1998 para a Brasil Telecom. Ele permaneceu registrado ali até à venda. Depois disso, passou a atuar em empresas terceirizadas. A verdade é que, de 1970 a 2005, viveu a transformação da telefonia brasileira. E por esse motivo, passou a colecionar artigos do gênero.

Na parede do seu quarto ele mostra um aparelho público, ‘vermelho, à base de fichas. Conta que modelos desta cor ficavam em shopping centers, por serem mais bonitos. Na churrasqueira ele mantém um outro modelo, semi público. Ficava no interior de alguns estabelecimentos. O usuário tinha que comprar a ficha. Mas a conta vinha na fatura do comerciante. Já na sala, um outro telefone, de 1946, bastante imponente e pesado.

Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior

Possivelmente, Antônio mantenha em casa o primeiro celular de Campo Mourão, datado de 1985. Inclusive, com manual intacto. Além dele, um aparelho contador de minutos, da década de 1970, utilizado por telefonistas, ainda funcionando. Se isso tudo já não bastasse, após o casamento com Ivonete, juntos, passaram a adquirir mais antiguidades.

A casa ainda mantém um rádio, à pilha, dos anos 50. Uma besta de ferro, balança de precisão para ouro. Fora isso, dezenas de outras ferramentas e utensílios dos anos 60 e 70. Na sala, Ivonete indica uma cristaleira de quase 150 anos. O móvel estava num galinheiro, servindo de abrigo aos bichos. “Quando eu vi a tirei de lá, a restauramos e hoje está bonitona aqui”, explicou. Hoje, a residência do casal está passando por reformas. Muita coisa será mudada. Menos as relíquias. Essas continuarão intocáveis, mesmo que fora de seus respectivos lugares, por enquanto.

Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior

A história dos Kiwel

Jorge Kiwel, irmão mais velho de Antônio, nasceu em Waltorp, Alemanha, em 1942. Mas, ao invés de um hospital, veio ao mundo no local mais inóspito possível a um ser humano: num campo de concentração nazista. Nasceu na hora e no lugar errados, em meio a Segunda Guerra Mundial. A mãe, Janina, e o pai Alfanasi, eram prisioneiros poloneses. Ela foi capturada ainda grávida. Mas acabou por ter a criança encarcerada. E, em meio as barbáries presenciadas, fez tudo o que uma mãe poderia ter feito para salvar o filho. Jorge hoje, mora em Campo Mourão. No alto de seus 80 anos, foi poupado das lembranças inquietantes que os pais tiveram em vida. Jorge está bem. Janina e Alfanasi, morreram.

Jorge chegou ao Brasil ainda aos cinco anos. Nada se recorda daquele tempo de guerra. Em Campo Mourão, criou sua família e tornou-se agricultor. É um sujeito boa gente, de bem com a vida. Na verdade, um sarrista. Mas, por trás do homem tranquilo, existe uma história de bastante sofrimento. A mãe fez de tudo para que o menino não fosse morto pelas mãos nazistas. Ainda viva, Janina contava que o escondia para que soldados alemães não o vissem. Como um boneco, Jorge era embrulhado com lençóis e colocado sob o colchão. A criança parecia entender. Permanecia em silêncio.

Antônio mantenha em casa o primeiro celular de Campo Mourão, datado de 1985. Inclusive, com manual intacto – Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior

Após o fim da Guerra, parte dos prisioneiros abrigados nos campos de concentração conseguiu sobreviver. Os Kiwel estão neste rol. Depois de se reencontrarem – Alfanasi e Janina estavam separados -, no pós-guerra, vieram ao Brasil. Aqui, decidiram pelas terras paranaenses. Deixaram a guerra para encontrar a paz.

Alfanasi e Janina Kiwel nasceram um para o outro. Foram criados na Polônia em tempos de conflitos e, mesmo assim, conseguiram se casar. Mas, três dias depois do matrimônio, ainda em 1942, transformaram-se em prisioneiros de guerra. Levados para trabalhar forçadamente na zona rural da Alemanha, presenciaram cenas de terror jamais esquecidas. Alfanasi morreu em 2016. Janina, em 2005, vítima de câncer.

As lembranças da família remetiam a um passado de pesadelos, torturas, fome e angústias. Revelavam a resistência humana diante das atrocidades. Identificavam as barbáries de uma raça que se auto mutila. Que, definitivamente, não se respeita. Depois de sobreviverem aos horrores da guerra, os Kiwel chegaram a Campo Mourão, onde viveram até a morte.

A Segunda Guerra Mundial foi encerrada em 27 de maio de 1945. Mas, ela jamais foi extinta da memória da família. Em 2012, antes de morrer, Alfanasi falou com este repórter. Eram histórias que ainda o machucavam. Cicatrizes abertas diante da dor.

Segundo ele, após se transformar em prisioneira, Janina já estava grávida. E, depois de cinco meses, foi transferida a um hospital-prisão. Principalmente, em função da rejeição militar, por filhos estrangeiros. Em março de 1944, depois do nascimento do primeiro filho – Jorge -, Janina evitou que a criança fosse morta por envenenamento de mamadeira. Tratava-se de uma prática comum naquela época: nazistas executando recém nascidos.

Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior

No campo de concentração, Janina fez malabarismos para esconder o filho. Muitas vezes o escondia debaixo do próprio colchão. Meses depois, o hospital-prisão em que estava foi bombardeado e acabou desmoronando. Centenas de pessoas morreram. Ela e o filho foram soterrados. Jorge estava em seus braços. Apesar de feridos, acabaram vivos. Depois de alguns dias, ela foi removida a outra prisão. Mas conseguiu fugir, levando o filho.

Acompanhada de outra mulher – não se tem informações sobre ela – e, ainda, com a ajuda de anônimos, viajou parte do percurso de trem. Outros 26 quilômetros fez a pé, sem se alimentar, até chegar a colônia onde o companheiro estava preso. No caminho, teve que se esconder diversas vezes de tropas alemãs. Também presenciou bombas caírem ao seu redor. Além de passar sobre dezenas de corpos de soldados mutilados pelo trajeto.

De acordo com Alfanasi, Janina enfrentou muitos obstáculos até chegar ao seu encontro. Além do medo, a fome foi bastante cruel. No percurso, não havia a quem pedir ajuda. Ao contrário. Eram todos inimigos. Não havia água, muito menos, comida. E, a sua preocupação, naquele momento, não era mais com ela. Mas sim, com o próprio filho. Janina fez o impossível para que sobrevivessem. E ela foi destemida. Uma leoa em defesa da cria.

Alfanasi era um sobrevivente da guerra e do tempo. Ao lado dos filhos, ele era, possivelmente, até, 2016, o último de seus descendentes a estar vivo. Segundo relatos, toda a sua família polonesa foi morta na Guerra. O casal veio ao Brasil em 49, junto com outros dois mil foragidos enviados pela Cruz Vermelha. Polonês, ele chegou a Campo Mourão nos primeiros dias de 1950, ao lado do filho, Jorge, e de Janina. Em terras paranaenses, o casal trabalhou como colono, garantindo o primeiro emprego na Fazenda de Pedro Parigot. Ele lembrou que se tratava de um país estranho, com costumes diferentes e uma língua esquisita. Foi um recomeçar tão difícil quanto o medo de uma nova guerra.

Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior

Anos depois trabalhou como operário em grandes construções, como na Usina Mourão e do Hotel Santa Maria. Já habituados com a poeira vermelha da região, os Kiwel tiveram o segundo filho, Antônio. Com ele, cinco netos, além de outros seis bisnetos. Mesmo sem gostar de relembrar o período de conflito, Alfanasi recordou o sofrimento da alimentação quando ainda era prisioneiro. A condição se resumia a comida ruim, de péssima qualidade. Por este motivo passou muita fome. Perdeu peso. Ficou no osso.

Ao mesmo tempo, testemunhou milhares de pessoas morrerem por inanição. Eram 100 gramas de pão de manhã. Beterraba com casca de batatinha com terra e tudo. E sopa no almoço e no jantar, recordou. A “suntuosa” ceia era servida num campo de concentração, onde mais de cinco mil pessoas se amontoavam. Muitos debilitados e, aos poucos, morrendo por falta de alimentação. Aqueles que ainda tinham condições de andar, eram obrigados a cavar suas próprias covas. Valetas à própria morte. Em frente aos buracos, eram metralhados. “Vi muito sangue correr naquela colônia”, revelou Kiwel.

Alfanasi morreu de infarte, em outubro de 2016, aos 93 anos. Criou seus dois filhos e dizia ter se tornado um dos maiores adoradores do Brasil. Sempre trabalhou como operário da construção, mais especificamente, como carpinteiro. Antônio, o filho mais novo, aposentou-se no ramo da telefonia. Trata-se de um gentleman. Sempre foi zeloso com o velho pai. E agora sem eles, Jorge e Antônio continuavam a saga dos Kiwel. A família sobreviveu à guerra e escolheu Campo Mourão para encontrar sua liberdade. E quem sabe, o alívio à alma.

Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior

➡️ Entre 1933 e 1945 a Alemanha nazista construiu 20 mil campos de concentração para aprisionar milhões de vítimas. Os campos eram utilizados para várias finalidades: campos de trabalho forçado, campos de transição, e como campos de extermínio construídos principalmente, ou exclusivamente, para assassinatos em massa. Desde sua ascensão ao poder, em 1933, o regime nazista construiu uma série de centros de detenção destinados ao encarceramento e à eliminação dos chamados inimigos do estado.

Foto: Dilmércio Daleffe/Tribuna do Interior