Num crime entre humanos, o que chamou a atenção foi um cão

Eram quatro amigos: Marlon, Jocimar, o tio de Marlon (não temos o nome) e um cão vira-latas, de cor caramelo. Juntos, seguiam as placas. Mas andavam sem direção. Com exceção do bicho, os três viviam em função do álcool. No caso de Jocimar, somente até a noite da última sexta. Após muitas doses de álcool, drogas e desavenças por motivos fúteis, foi esfaqueado, sem piedade por Marlon. Caiu morto, em meio ao asfalto da principal avenida de Campo Mourão. Enquanto o sangue escorria, o amigo caramelo permaneceu ao seu lado. De certo modo, sabia o que ali aconteceu. Não arredou pé. Não há dúvidas que o lado humano de toda a história, definitivamente, não vem de humanos. Mas sim, de um animal.

A vida de Jocimar foi levada por volta da meia noite. Os três humanos viviam juntos já, há um mês. Nômades, escolheram as ruas, às suas casas. O álcool, à uma vida careta, repleta de rituais. E, desde que se encontraram, optaram ser amigos – se é que se pode dizer assim. Jocimar era natural de Ubiratã. Mas tinha como último endereço uma rua de Cianorte. Em Campo Mourão estava há 90 dias. Marlon é natural de Goioerê. Mas teria vindo de Marialva, há 30 dias, ao lado do tio.

Os três se conheceram na Casa de Passagem de Campo Mourão. Lá, observaram afinidades. A principal delas, o vício pelo álcool. Não se largaram mais. Desde então, começaram a perambular juntos. Ao lado dos três, o cãozinho caramelo. De dia pediam dinheiro às compras: o famoso corote de aguardente. Para se alimentarem, ganhavam comida. De noite, quando não alcoolizados, as saídas de emergência eram as camas limpas e fraternais do albergue. E ainda, acompanhadas sempre por um prato de comida quentinho, feito pelas mãos caridosas dos freis franciscanos.

Mas naquela última noite juntos, o álcool selou o destino dos quatro amigos. Marlon foi preso. Jocimar colocado nas gavetas geladas do Instituto Médico Legal. Já o tio de Marlon, virou testemunha. E o cão, revelou um sentimento que os dois primeiros não tiveram. Horas antes, pediam moedas em frente a um bar. Mais uma dose. Marlon andava com uma faca de serra na cintura. Mas, depois de uma discussão, a cravou o peito do “amigo”. Parte dela ficou em sua mão. A outra, no peito de Jocimar. Vendo o que fez, arremessou o pedaço na calçada. Depois, saiu tranquilamente, sendo capturado adiante. Segundo o boletim de ocorrências da Polícia Militar, ele confessou a autoria. Foram pelo menos seis golpes. Cometeu o crime aos 19 anos. Quando foi preso, já estava com 20. Assassinou o “amigo” no dia de seu aniversário.

O tio de Marlon tentou separar a briga. Em vão. Foi cortado no braço e no rosto. Vendo a fúria incontrolável do sobrinho, não foi capaz de evitar a tragédia dos outros dois. Ele relatou que, apesar de Marlon ter o seu sangue, não deixava de ser um covarde. “Ele é um covarde. Não merece nem ser preso. Foi uma covardia o que fez com Jocimar”, disse.

Enquanto o corpo permanecia sobre o asfalto, o cão caramelo se dirigiu até ele. Ali, apanhou um boné vermelho, caído durante a briga. Era de Jocimar. Então, o carregou até a calçada. E permaneceu com uma das patas sobre ele. Durante todo o procedimento das autoridades, não tirou os olhos do cadáver. Em alguns momentos, latiu alto, parecendo chamar o amigo. Mas não havia mais o que fazer. Jocimar não o escutava. Já estava morto.

Marlon foi preso em flagrante. Aos 20 anos, sua ficha criminal indica várias passagens: vias de fato, ameaça, lesão corporal, furto qualificado, corrupção de menores, porte de armas. E agora, homicídio. Jocimar correspondia a mesma altura. Ele tinha 39 passagens: roubo, furto, lesão corporal, ameaça e vias de fato. Afinidades além do álcool.

Na Casa de Passagem, segundo relatado, Marlon era um sujeito com temperamento difícil. E o problema não vinha apenas do álcool. Havia droga na parada. Já, Jocimar, era o avesso comportamental do “amigo”. Segundo os coordenadores da Casa, mantinha um jeito tranquilo, pacífico. “Tínhamos muito carinho por ele”, disse o Frei Galileu. A última visita dos quatro à entidade aconteceu 20 dias antes da tragédia.

A Casa de Passagem informou que os três tinham contato com suas famílias. No entanto, em decorrência do uso de álcool e drogas, acabaram fragilizando os vínculos afetivos. Após sua morte, o corpo de Jocimar foi levado até o IML de Campo Mourão já, na madrugada de sábado. No mesmo dia, a mãe, Fátima, deixou Ubiratã e o reconheceu. Ele foi sepultado no cemitério municipal de Ubiratã. Não houve velório. O caixão lacrado foi acompanhado por cinco pessoas da família. Após enterrado, a história de Jocimar foi encerrada sob as lágrimas da mãe.

Fátima conta que Jocimar revelou ser usuário de drogas desde os 15, ainda em Ubiratã. Com o tempo deixou a maconha e se afundou no álcool, cocaína e crack. O temperamento mudou intempestivamente. Numa das vezes, tentou enforcar a própria mãe no interior da casa. Ele queria dinheiro para o vício. E foi a mesma falta de grana que o levou a delegacia por 39 vezes. “Ele ficou muito agressivo com o tempo. Mesmo assim eu continuava o amando muito”, revelou Fátima.

Há dois anos, ele decidiu sair da saia da mãe. Virou uma espécie de “Easy Rider”. Ganhou as ruas e acabou em Cianorte. Lá, num telefonema pediu perdão à Fátima por todos os seus erros. E os dois se perdoaram. Depois disso, como a um fantasma, Jocimar surgiu pelas avenidas de Campo Mourão. Fazia mais de um ano em que não dava notícias a ela. “Sempre soube que essa notícia chegaria. Só não pensei que fosse assim, tão violenta”, disse. Ela espera que o assassino continue preso por muito tempo. “Ele não pode mais fazer isso com o filho de ninguém”, disse, revoltada.

Jocimar não acreditava em Deus. Morreu pagão. À mãe e a uma vizinha dizia ser conduzido pelo diabo. “Ele dizia que Deus não ligava pra ele”, revelou Fátima. O menino cresceu como um garoto normal. Brincava nas ruas com amigos. Não gostava de estudar. Durante todo o tempo no colégio, jamais conseguiu sair da primeira série.

E por ser carismático, pelo menos com os animais, deixou um verdadeiro amigo no plano terreno: o cão caramelo. A cena forte e comovente do cãozinho entristecido após sua morte, foi capturada pelas lentes do plantão da TRIBUNA. Ali, naquele cenário, o animal foi o único a revelar seus sentimentos. Os outros humanos, possivelmente, os perderam com o tempo. Ou apenas, foram ofuscados pelo vício das ruas. E, mesmo que um dia os recuperem, agora é tarde demais a arrependimentos. O ódio já foi semeado. Em tempo: não se têm notícias do cão. Possivelmente, continua pela área central de Campo Mourão.