O corpo fechado de Daniel

Campo Mourão, 29 de novembro de 2009. Em companhia de alguns amigos e depois de algumas doses etílicas, Daniel deixou um bar no centro da cidade. Sobre a penumbra de um poste que quase nada iluminava, se sentiu mal. E, enquanto os colegas continuaram a caminhada, decidiu parar. Naquele instante virou o corpo à rua e, ao mesmo tempo escutou estampidos, como o barulho de escapamentos de motos. Então caiu. À sua surpresa, estava agora sobre uma grande possa de sangue. Mais precisamente, o seu sangue.

Daniel ainda não sabia. Mas os estampidos que escutara, segundos antes, eram na verdade disparos de arma de fogo. Um dos projéteis veio direto ao seu encontro. Adentrou o lado direito, quebrou uma costela. Atravessou o pulmão e se alojou na coluna na região torácica. Sangrando intensamente, foi levado às pressas à Central Hospitalar. Naquela noite, ainda acordado, perguntou a um dos médicos se iria sobreviver. Mas não havia tempo às respostas. Era o momento de ser operado.

Por sorte ou um milagre divino, o projétil não atingiu nenhum nervo, artéria ou veias. Permaneceu uma semana internado, utilizando um dreno de pulmão devido ao sangramento interno. E, após a retirada do equipamento, ficou a dor intensa da costela quebrada. Agora, Daniel estava fora de perigo. E o detalhe: a bala continua alojada em sua coluna. Até hoje. Ela jamais ocasionou qualquer dano. “Depois que sai do hospital fiquei por quase um mês praticamente deitado. Porque doía muito andar ou fazer qualquer movimento”, lembrou.

Hoje, lembrando por tudo o que passou, Daniel sabe que aquela virada de corpo à rua, no instante dos estampidos, definitivamente, o salvou. “Não fosse isso, o projétil atingiria meu coração em cheio”, disse. Na época do fato, um dos policiais teria revelado ao seu pai que, em Campo Mourão, até aquele ano, três casos de bala perdida haviam sido registrados. Daniel foi o primeiro a sobreviver.

Na época, Daniel lembra que a imprensa local divulgou o fato com amplitude. “Eles diziam que um estudante do Cefet havia sido baleado. Mas não diziam o porquê. Dava a entender que eu era um bandido, ou um encrenqueiro”. As notícias o deixaram, de certa forma, pior que estava. Pelo menos, emocionalmente. Hoje, no entanto, o fato já está superado. Ele até ri do caso. E jamais a polícia chegou ao autor dos disparos. Um “fantasma” que continua à solta.

Após o ocorrido, Daniel Ferreira Tomáz continuou os estudos na Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Se formou em Engenharia Civil e, pouco antes da pandemia, montou o próprio bar. Além de vender, continua tomando. Com família de Cianorte, chegou à Campo Mourão pensando apenas estudar. Mas acabou adotando a cidade como sua.

Durante a entrevista, Daniel brincou com a possibilidade de ter o “corpo fechado”. Na verdade, ter “corpo fechado” significa algum tipo de proteção mística contra doenças ou ferimentos. O termo provavelmente tem origem em religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda.

No entanto, há pelo menos um século faz parte da cultura como um todo do país. Já o conceito genérico de proteção mística divina é certamente pré-histórico. Essa proteção seria conferida por meio de amuletos ou rituais que, a depender da crença, variam desde simples orações, como fazia Lampião – conhecido pistoleiro do início do século XX – até sacrifícios humanos, passando pelo consumo ritualizado de bebidas alcoólicas.