“Pako” viveu 100 anos. Mas morreu com 62

Ele viveu 100 anos. Mas morreu com 62. Teve muitas mulheres. Fez dinheiro. Gastou bastante. Teve seis filhos. Jamais se casou. Viveu intensamente, como poucos. E trabalhou mais que a maioria. Vivia sujo de graxa. Optou ser mecânico. Dos bons. Bebia. Orava. Acreditava em Deus. Quis o destino que se envolvesse em um homicídio. Sérgio Miguel Spilka, ou simplesmente “Pako”, como era conhecido, possuía um coração disciplinadamente puro. Era valente. Deixou as lembranças de uma personalidade forte. E de histórias infinitas com os amigos. Hoje, as mesas de bar onde se sentava, estão vazias. Segundo os companheiros, ele vai fazer falta. Muita falta. 

Como contar a história de um homem? Definir uma vida inteira em poucas linhas? Difícil. Ainda mais se tratando de “Pako”. Ele morreu na última semana. Segundo a família, por complicações nos rins e fígado. Era um sujeito destemido. Daqueles de empunhar bandeiras. Não temia nada. Exceto a morte. Nos últimos meses, o semblante já não era de intensa alegria, como sempre teve. Escondia problemas de saúde. Até mesmo dos irmãos. “Eu o via mais triste. Escondeu a doença”, disse Herivelto João Spilka, o irmão mais velho. De acordo com ele, não faz muito tempo, “Pako” confessou o medo de “viajar”. Pra sempre. 

“Pako” era o irmão do meio. Antes veio Herivelto. E por último, Hugo. Também tinham uma irmã, do coração, Vera. A infância aconteceu em Campo Mourão. Brincava nos lotes vazios da Irmãos Pereira, próximo onde está hoje a praça do Fórum. O menino branquelo se destacava pelos grandes olhos. Um olhar diferenciado. Era muito levado. Mas nunca maldoso. “Era o mais puro de todos nós”, lembram familiares. Junto aos amigos pequenos, brincava de bets, e futebol. De acordo com os irmãos, tudo o que pode aprontar enquanto menino, fez. E jamais se arrependeu. De nada. 

Pragmático, sabia que estudar não era a sua praia. Frequentou o Colégio Estadual. Concluiu o segundo grau. E naquela instituição, virou lenda. Um dia qualquer, dos idos de 70, decidiu estourar uma bomba num dos banheiros. A estrutura praticamente chacoalhou. Ficou conhecido. Uma espécie de homem bomba da época. Mais uma “arte” no currículo. A traquinagem não aconteceu à toa. “Pako” sempre curtiu bombas, foguetes, rojões. Ou qualquer outra coisa que estourasse. Barulho era com ele mesmo. Na verdade, queria era assustar a turma.

Em 1985, numa excursão ao Rio de Janeiro, “Pako” saiu da terrinha para assistir a Fórmula 1. Foi com uma turma boa. O bagageiro do “busão”, lotado com cerveja. Acima, diversas “bombinhas” nos bolsos. À noite, durante a passagem pelo distrito de Ivailândia, quando o ônibus parou num dos antigos quebra molas, “Pako” não pensou duas vezes. Acendeu uma das bombas e a atirou dentro de um boteco, lotado de gente. Antes mesmo do clarão e, consequentemente, da explosão, só se via homens correndo. Mesas voando. Tacos de sinuca ao ar. Pessoas se atropelando. Caindo umas sobre as outras. A gargalhada no “busa” durou até Maringá. Foi quando a Polícia os parou. E desceu a lenha. Entre mortos e feridos, todos salvos. Mas a lição ficou. 

Aos 18 anos, “Pako” morou em Brasília. Foi servir o Exército. Fez parte do Primeiro Regimento de Cavalaria e Guarda. Cuidava dos cavalos. E adorava zelar dos bichos. Mesmo longe, jamais deixou de estar próximo da família. Sem internet, o jeito era com as cartas. Herivelto as guarda até hoje. “Durante aquele ano sempre nos falamos através das cartas”, disse. Sérgio sempre foi ativo. Trabalhador. Começou aos 11 anos. Já na mecânica do pai. A Oficina Oeste. Com aptidão no negócio, “seo” Alberto, o pai, pagou um curso de mecânica em Ponta Grossa. Permaneceu um ano nos Campos Gerais. Voltou mais sabido. E pronto a caminhar com as próprias pernas. 

Com o tempo, “Pako” começou a namorar. Mulheres não faltavam. Afinal, era um cara de boa fala. Uma lábia irresistível. Uma de suas características sempre foi a sinceridade. Então, não media palavras. Falava na lata. Teve vários relacionamentos. Nunca casou no papel. Alguns, resultaram em filhos. Sua última relação, que durou 17 anos, terminou em janeiro deste ano. E “Pako” sentiu o baque. Depois do rompimento, ele passou a não ter mais o ânimo de antes. “Sentimos que estava mais pra baixo. A separação mexeu muito com ele”.  Com a tristeza aparente, Herivelto passou a estar mais presente, não o deixando sozinho. Sempre o chamando para almoçar ou jantar. 

Inteligente, estava preparado para dialogar em qualquer área. Principalmente, na política. Amigos lembram de muitas prosas sobre prefeitos, candidatos, deputados e vereadores da cidade. “Pako” sempre questionou a vereança. E quando encontrava algum deles no boteco, não prestava. O “pau” comia. Perguntava. Questionava. Duvidava. Dedo em riste. Um cidadão utilizando-se de seu direito mais sagrado: cobrar. 

Cesar Bronzel conta que era amigo de “Pako” desde os três anos de idade. Eram vizinhos. Sempre foi de uma personalidade forte. Bondoso. Tinha uma maneira simples de falar. Do jeito que todos entendiam. “Ele não compreendia só de mecânica. Sabia de tudo”, diz. Nos mais de 50 anos de amizade, “Pako” esteve presente nos momentos mais importantes de Bronzel. “Ele esteve na formatura e no casamento dos meus filhos”. 

Mas a grande parceria entre os dois aconteceu mesmo no kart. Tinham uma turma de Campo Mourão que iam juntos às corridas pelo Paraná. Certa vez, correndo em Rondon, nas ruas da cidade, um kartista teve uma convulsão em plena pista, durante a prova. Seu kart saiu da pista e acabou retornando pela contra mão. “O Pako e o Tuta viram aquilo, viraram seus karts e seguiram na contra mão também”, disse. O resultado não poderia ter sido pior. Outro piloto, vendo que iria bater contra os dois, se desesperou e desviou. Mas havia um toco de árvore no caminho. O kart levantou voo e caiu dentro de um banco da cidade. “O alarme disparou. A polícia foi acionada. Virou um banzé. Aquilo era coisa do “Pako” mesmo”, lembra.   

O apelido de Sérgio veio ainda na infância. “Pako” era muito branco. Então a tia o chamava de polaco. Mas um priminho, não conseguia pronunciar a palavra “polaco”. Falava apenas “paco”. A turma achou legal. E, desde então, Sérgio nunca mais deixou de ser “Pako”. Ao amigo Ricardo Widerski, restou a tristeza. “Um homem que viveu 100 anos. E que morreu com 62. Amigo. Alegre. Intenso. Perspicaz. Estou sentido”, revelou.  

Família

Familiares contam que a família sempre foi unida. Mas os laços se estreitaram ainda mais entre os irmãos, após a morte dos pais. Dona Martinha, a mãe, morreu há 15 anos. Alberto, o pai, foi ainda em 1991. Um ano depois que “Pako” se envolveu em um homicídio. Foi um episódio de muita tristeza a todos. E que aconteceu em novembro de 1990. Na época, o pai tinha um sítio aos arredores do centro. Criava porcos. Mas se queixava de furtos de animais durante à noite. 

Teve um dia que Alberto pediu ao filho que ficasse na propriedade à noite. Tinha informações que iriam adentrar e levar os suínos. E assim, “Pako” obedeceu. Armado, ficou de guarda. Foi quando avistou um homem caminhando em direção ao chiqueiro. No escuro, disparou uma única vez. O acertou em cheio. Caiu morto. O pai decidiu comunicar o fato a um parente, que imediatamente correu até o sítio. E deu a ideia “errada”, de atirar o corpo ao rio. “Ninguém queria que o homem morresse. Mas como aconteceu, o certo era chamar a polícia. E isso não foi feito”, diz Herivelto. 

O caso veio à tona, e “Pako” respondeu pelo crime. Entre idas e vindas, inúmeras vezes, ao fórum, acabou absolvido do homicídio. Mas condenado por ocultação de cadáver. Restou ainda uma indenização à família. Paga em 2014. O irmão lembra que, apesar de tudo, “Pako” teve o perdão da mãe do rapaz morto. A reportagem tentou encontrá-la. Sem sucesso. A morte do pai aconteceu meses após o homicídio. “Ele vinha sofrendo muito com o ocorrido. Muito possivelmente, se culpando pelo envolvimento do meu irmão”, disse Herivelto. 

Sérgio morava há tempos na própria oficina. Lá, fez uma casa boa. Mas, desde o começo deste ano, desfrutava a solidão. Era um cara simples. Normal até demais. Gostava de sopas. Frango caipira. Macarrão. Sua última refeição com os irmãos aconteceu em 5 de julho. Um dia de frio. Herivelto o convidou. Ele foi. Disse que queria comer um “franguinho” caipira. O irmão obedeceu. Antes de comer, pediu para rezar uma Ave Maria. Naquele dia, “Pako”, estava abatido. Já vinha escondendo a doença.  

“Pako” também sofria calado com o problema envolvendo dois de seus filhos. O mais novo e o mais velho. Ambos percorreram caminhos não indicados pelo pai. Traficaram. Acabaram presos. “Ele nunca concordou com o que fizeram. Dizia que o caminho a seguir era apenas com o trabalho. Honesto”, lembra Herivelto. Mesmo sofrendo com a situação, “Pako” nunca os visitou na cadeia. A própria família pedia isso. Seria um plus de sofrimento. 

Fora do trabalho, e dos problemas pessoais, “Pako” idolatrava uma mesa de bar. Era lá onde encontrava os amigos. Falava besteiras. Coisas de homens. Discutia política. “Abençoava” figuras públicas. Bebia. Ria. Gargalhava. Um local sagrado, onde, definitivamente, os problemas não existiam. Sempre teve lugar cativo nas melhores mesas. Com os melhores frequentadores. Sua presença era a certeza de uma excelente prosa. Amigos não se esquecem da cena. Chegava ao bar. Descia do carro. E lá vinha ele com a pança gigante. Muitas vezes, ainda sujo do trabalho.

Quase uma figura pública, “Pako” era uma espécie de mito na cidade. Uma criatura folclórica. Muito já foi falado sobre ele. Na época dos bons carnavais de Campo Mourão, lá estava ele. Pertencia ao bloco dos Árabes. Só gente boa. Todos “santos”. E ele adorava aquele ambiente. Afinal, estava ladeado de bons companheiros. Muita bebida. E de muita festa. Apesar de festeiro, se reservava espiritualmente. Católico, acreditava em Deus. Mas não gostava de frequentar a igreja. Os mais próximos dizem que não gostava de padres.      

Doença

Durante toda a vida, “Pako” bebeu. Talvez mais do que poderia. Isso acarretou problemas no fígado. Possivelmente, ciente do problema, decidiu esconder da família. E pagou o preço. No começo de julho, foi vítima do Covid-19. Ficou mal. Foi hospitalizado. Fez quatro testes. Dois positivos. Dois negativos. Não se sabe se o tal vírus é capaz de se esconder. Ou se os testes aqui não prestam. Ele preferia acreditar na segunda hipótese. Mas ficou sem saber se estava ou não infectado. Mesmo assim, permaneceu cinco dias num quarto de hospital, isolado. “Ele me ligava e dizia que estava bem. Enquanto companheiros de quarto se rastejavam, era o único que conseguia andar”, lembra Herivelto. 

Dias depois saiu do hospital. Estava bem. Mas no dia 03 de agosto, quando começou a trabalhar, tudo ficou escuro. A visão apagou. Então sentou-se. E, com calma, ligou à uma das filhas. Foram a um hospital, onde foi medicado. “Demos remédio para pressão e parecia tudo estar voltando ao normal”, disse o irmão. E, assim, retornou para casa. 

Mas de noite, com fortes dores na nuca, foi levado até a UPA. E, de lá, á Santa Casa. Removido à Unidade de Terapia Intensiva (UTI), normal, não do Covid, ficou em observação. Durante os primeiros dias, Herivelto conversava com ele através do whatsapp. Dizia que estava bem. Reclamava apenas do quarto, que não tinha tomadas para carregar o celular. No dia 04, se submeteu a exames. E escreveu ao irmão dizendo que os médicos queriam falar com ele. “Não é nada sobre dinheiro. Acho que não é bom o que eles vão dizer”, escreveu. “Pako” estava preocupado.  

No dia 05, o celular ficou mudo. “Pako” já estava em coma. E não mais respondeu. Alguns dias se passaram, até chegar dia 25. Foi o último em vida. Morreu às 10h25. Uma manhã de céu intensamente azul, em uma cama de hospital, sem nem ao menos ter se despedido dos filhos, irmãos e amigos. Tudo o que sempre cultivou. Conta a filha, Verônica, que “Pako” não queria ser entubado. “Tiveram que usar duas doses de sedativo. Ele não queria ficar inconsciente”, disse. Antes das aplicações, uma enfermeira contou à família que falava muito sobre os filhos. Muito possivelmente, com medo de não vê-los mais.   

Como contar a história de um homem em poucas linhas? Como narrar uma vida intensa? Muito difícil. Talvez aqui, o importante seja mostrar o quanto “Pako” foi humano. Ele errou. Acertou. Lutou. Trabalhou. Ganhou. Perdeu. Amou. Viveu. Era solidário. Repartia o pouco que tinha. Quando tinha. Permaneceu a maior parte da vida sem sobras. Nunca foi rico. Pelo menos de grana. Espiritualmente, era grande. Agora, restaram as lembranças. Memórias. Porta retratos. E um cara imenso, que não voltará mais.