População em situação de rua aumentou cinco vezes em Campo Mourão

Os obstáculos no acesso à alimentação, higiene e direitos são apenas algumas dificuldades que a população em situação de rua enfrenta diariamente e a torna ainda mais vulnerável. Esse grupo, invisibilizado, por alguns, há tantos anos, e tão heterogêneo, aumentou durante a pandemia da Covid-19 em Campo Mourão. E de forma astronômica.

Dados obtidos pela TRIBUNA DO INTERIOR junto ao Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), apontam que antes da pandemia, até meados de 2019, a cidade tinha apenas 10 moradores de rua ‘fixos’ – pessoas de Campo Mourão. Porém, de lá para cá este número é cinco vezes maior: atualmente está em 50 – dados de janeiro a abril deste ano. Em 2022, eram 56 vidas nesta situação. Dos atuais 50 moradores de rua, três são mulheres. O restante, todos homens.

Outro dado que chama atenção é o perfil de idade deste público. Todos novos ou de meia idade. Atualmente, os moradores em situação de rua em Campo Mourão estão concentrados na faixa dos 18 a 30 anos e 40 a 59 anos. A maioria tem problema com algum vício – álcool ou algum tipo de droga ilícita-, ou então sofre de transtorno mental.

Da mesma forma houve crescimento no número de moradores de rua chamados de trecheiros. São indivíduos que perambulam de cidade em cidade, sobrevivendo de ajudas filantrópicas. Somente no ano passado, o Creas chegou a prestar 456 atendimentos a estas pessoas. Este ano, de janeiro a abril, foram 181 atendidos. “Este aumento de pessoas morando na rua aumentou não somente em Campo Mourão e região, mas no Brasil e no mundo como um todo. Reflexo da pandemia”, argumentou Andreia Rejane Vinchi, que atua na Gerência e Gestão da Garantia dos Direitos Humanos, na secretaria da Ação Social de Campo Mourão. Ela é também a responsável pelo Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social).

Andreia observa que durante a pandemia muitos informais perderam seu emprego. Sem dinheiro sequer para garantir o alimento, perderam condições de bancar o aluguel. Não tiveram escolha se não ir às ruas. Além disso, muitos entraram em depressão, se perdendo nas drogas, tendo o mesmo e infeliz destino.

Além destes dois fatores, há também questões de problemas envolvendo vínculo familiar. Durante a pandemia, muitos homens, explica Andreia, por conta do uso abusivo de álcool ou drogas, acabaram se separando da esposa, adotando as ruas como moradia. Existem ainda casos em que os pais são idosos, dão muito trabalho, e há alguma intervenção criminal de maus-tratos contra o idoso, em que os acusados têm de sair da casa, parando nas ruas.

Andreia avalia que o número é expressivo e preocupante porque se trata de vidas expostas. “Não olhamos para estas pessoas como números e sim vidas. Todas têm uma família, mas por algum motivo, em alguns casos até como opção, acabaram nas ruas”, frisa. Ela comenta que todos são acompanhados diariamente pela secretaria de Assistência Social.

Abordagens sociais são realizadas todos os dias e também a noite durante o fim de semana, em horários esporádicos. O problema é que a minoria, ou quase nenhum deles, aceita ajuda para deixar as ruas. Caso de sucesso, de morador de rua que recomeçou a vida, é raro, lamenta Andreia. “Já tivemos, mas é muito raro mesmo”, ressalta.

O problema, é que quando a pessoa chega a esta situação, foge do padrão de regras da sociedade e não quer mais abrir mão dessa ‘liberdade’ que a rua oferece. “Já tivemos casos em que a pessoa conseguiu dar a volta por cima, mas três ou quatro anos depois recaiu voltando às ruas”, disse Andreia. Ela acredita que a situação pode piorar ainda mais nos próximos meses, já que a questão do desemprego ainda está longe de estabilizada no País. Ou seja, Campo Mourão pode sim ter ainda mais moradores em situação de rua.

“Vida de cão”

Cerca de 1,70 de altura, pele morena clara, surrada do sol quente, cabelos e barba por fazer. Gabriel de Almeida, nome fictício adotado pela reportagem, já que ele aceitou dar a entrevista apenas caso não fosse identificado, é um dos 50 atuais moradores que vivem em situação de rua em Campo Mourão. Ele descreve a situação em apenas três palavras. “Vida de cão”.

Gabriel tem 28 anos de idade. Se perdeu no vício do crack. Disse que já recebeu ajuda do município, de entidades filantrópicas, mas que sempre recaiu, voltando para a rua. Nesta situação, relata, não era ‘aceito’ pela família dentro de casa. “Desta forma nem eu quis ficar mais em casa para não ver minha mãe e irmão mais novo sofrendo. Perdi meu trabalho, perdi uma moto do ano que tinha na época, namorada…enfim, a vida desmoronou para mim”, relatou, ao informar que está nesta situação há nove anos. Ele não quis informar como entrou para o mundo das drogas.

O rapaz reconhece que para mudar de vida só depende dele. E que tem escolha a fazer. Mas segundo diz, faltam forças. O vício e a liberdade de viver como bem entender são maiores que ele e sua vontade de retomar a vida. “Vou levando a vida assim… Pedindo uma marmita de comida para um e para outro, sendo marginalizado por alguns que desconhecem a realidade e até por ignorância mesmo, mas no meu canto, sem incomodar minha família e sem fazer mal a ninguém”, falou. Antes de encerrar a entrevista, Gabriel disse que trabalhava no RH de uma grande empresa de Campo Mourão. Ele diz que se arrepende de ter se perdido. Não culpa ninguém por seus atos e que só lamenta pelo sofrimento da mãe e do irmão.

Adão e seus cinco gatos

Andando pelas ruas de Campo Mourão, a TRIBUNA encontrou também Adão da Silva Santos, 43 anos. Atualmente ele não mora literalmente na rua. Mas é sem teto. Vive em uma barraca de lona montada no meio de uma grande moita de bambus, às margens da Avenida Miguel Luiz Pereira, entre o posto Tio Patinhas e o Celebra Eventos. Adão vive no local com seus cinco gatos recolhidos da rua. Segundo ele, os bichanos são seus ‘parceiros’. “Eles não têm nome ainda. Chamo todos de ‘miau’”, informou. Para tratar dos gatos, Adão recolhe restos de comida do lixo. “Estão todos bem gordos e saudáveis”, garante.

Ele não autorizou a reportagem a conhecer sua moradia improvisada. Disse que temia que alguém pudesse lhe fazer algum mal. Adão foi abordado no semáforo de acesso ao Novo Centro. Estava no local vendendo seus quadros em cerâmica. Sujeito bom de papo, o artista, disse que tem família em Campo Mourão, mas que foi parar nas ruas para não ‘dar trabalho’ aos familiares. Ou seja, por opção. Ele não quis entrar em detalhes do porque deixou casa e família para viver esta vida. Mas a princípio, o vício em crack o deixou nesta situação. Adão informou que seu pai é aposentado, e de idade bastante avançada. Vive aos cuidados de um irmão. Sua mãe reside em Sarandi. Não está muito bem. Além de diabética, sofreu um AVC recentemente. Antes ela teve de amputar uma perna por complicações da diabete.

O artista de rua tem mais três irmãos, sendo uma mulher e dois homens. Além disso, tem dois filhos. Um casal. Eles moram em Maringá, com sua ex-esposa. Mas ele não tem muito contato. Sequer sabe ao certo a idade dos filhos. “Apenas sei que são adolescentes”, falou. Santos disse que não arruma emprego porque ‘gosta da arte’ e prefere tentar a vida vendendo seus quadros. “Mas é muito difícil ser reconhecido”, lamenta.

Ele comercializa os quadros a preços entre R$ 15,00 a R$ 25,00. Tem dias que consegue vender entre duas a três peças. Já dias que não vende nada. Adão disse que ainda sonha em conseguir uma moradia mais digna, mas ‘tudo ao seu tempo’. Pelas ruas, relata como principais dificuldades conseguir alimento e banho. Diz que está tentando ‘arrumar’ um fogão e um botijão de gás, o que facilitaria para ele. “Assim eu conseguiria fazer minha comida”, diz. Banho então, praticamente quase nunca. “Quando vendo os quadros compro marmita com meu próprio dinheiro, caso contrário recorro a pedir uma marmita a alguma boa alma. Alguns ajudam. Já outros nos mal tratam como se fôssemos animais”, relatou.

Adão vive em uma cabana montada em uma moita de bambu às margens da Miguel Luiz Pereira, até tem família, mas diz que nas ruas encontrou a “liberdade”

As marquises de Rubens e Cássia

Rubens e Cássia estão juntos há 12 anos. E acabaram nas ruas de Campo Mourão desde novembro do último ano. Contam que a vida desandou em setembro, depois que decidiram ajudar uma família em vulnerabilidade social, em Abaté, interior de São Paulo. Até aquele mês, tinham emprego, teto e tudo caminhava bem. Mas bastou alojar o casal pra que o mundo virasse de ponta cabeça.
Aos 30 anos, Rubens Cardoso trabalhava como pintor e servente de pedreiro. Ganhava o suficiente para manter a companheira e a filha, hoje com seis anos. Não tinham luxo. Mas viviam com dignidade. E, principalmente, com um teto. “Decidi ajudar um casal que estava na rua. E isso acabou com a gente”, lembra.

Segundo ele, no início o sujeito era pacífico. E sempre agradecia pela mão estendida. Mas, depois de alguns dias, começou a usar drogas na casa. “O temperamento dele mudou. Ficou agressivo. E passou a querer seu eu. Até chegar o dia em que pegou uma faca e me acertou”, disse. Mostrando a cicatriz num dos braços, Rubens explicou que pegou suas coisas, a mulher, a filha e sumiu de lá. “Tive que deixar muita coisa, até o emprego. Depois disso, caímos na rua”, afirmou.
Para não expor a filha à vulnerabilidade social, a deixou com a mãe. A promessa era voltar para apanhá-la. Principalmente, depois de se estabilizar. Mas, passados oito meses, as coisas só pioraram. Ele e Cássia continuam nas ruas.

Em outubro de 2022 o casal rumou até São Francisco, em Santa Catarina. Lá, as coisas deram errado. Sem emprego, rumaram até Joinville. A empreitada também não vingou. Então, a pé, subiram a serra até Curitiba. E, mais adiante, chegaram a Campo Mourão.

Na cidade desde novembro, ganharam as marquises da área central. Se alimentam de doações. Banho, às vezes. Rubens e Cássia já ficaram um mês sem uma ducha. Ao lado de todo o pouco que possuem, estendem duas ou três cobertas na calçada. E por ali permanecessem em busca de piedade.

“Eu queria um emprego e um lugar pra morar. Não estamos na rua porque desejamos. Acreditamos em Deus e sabemos que vamos sair dessa situação”, diz Rubens. E, se até pouco tempo eram dois, agora a “cama” abriga três. O casal adotou “Tiquinho”, um cãozinho caramelo abandonado na porta de um supermercado do centro de Campo Mourão. Se há comida para dois, três também se alimentam.

Rubens e Cássia estão juntos há 12 anos. E acabaram nas ruas de Campo Mourão desde novembro do último ano

Procura diária pela Casa de Passagem por “vulneráveis sociais” subiu de 18, em 2022, para 23 este ano

Não se sabe ao certo quantos são. Quem são. De onde vêm. O que querem. Pra onde vão. Mas eles não param de chegar. Em vulnerabilidade social, os ditos “invisíveis” perambulam em busca de algo que, por muitas vezes, nem mesmo eles sabem o que seja. Deixaram lares, famílias, o passado. E caminham passo a passo, sem jamais serem percebidos pelos olhos da sociedade. Seguem as placas. Mas caminham sem direção.

Em Campo Mourão a sua presença ficou mais evidenciada no pós pandemia. Sob marquises e praças, é evidente o maior número de pessoas sem teto. É bem verdade que a maioria delas não deseja ali estar. São sobreviventes das grandes cidades e que, por motivos como o alcoolismo ou frustrações amorosas, deixaram tudo. Outra parcela é refém de entorpecentes. Mais especificamente, o crack. Estes, optaram pela própria “liberdade”. E viraram uma espécie de fantasmas de si mesmos. E numa guerra contra demônios, acabaram vencidos. Vencidos por seus próprios demônios.

Mas, seja qual for o motivo, todos são atendidos pela Casa de Passagem São Bento José Labre. Coordenada por freis franciscanos, o local é um dos poucos, senão o único, capaz de abrigar pessoas vulneráveis na cidade. Dados da própria entidade revelam que em 2022 uma média de 18 pessoas foram atendidas por dia. A alta demanda fica mais evidenciada com os números deste ano, que aumentaram para 23.

O abrigo conta com alimentação, banho, cama, cobertores, além de um carinho a quem nada tem na vida. “Nossa missão é a de acolher quem mais precisa. Fora os que aqui chegam, também vamos às ruas em busca de pessoas desabrigadas”, disseram os freis.

Ação Social oferta serviços a moradores em situação de rua e pede à população que evite esmolas

Ciente do problema dos moradores em situação de rua em Campo Mourão, a Secretaria da Assistência Social, por meio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social, oferece vários serviços de acompanhamento com profissionais específicos a estas pessoas. A técnica de referência é uma psicóloga, que presta o serviço psicossocial e os encaminhamentos, seja para documentação, mercado de trabalho, saúde, entre outros.

Paralelo a isso o município tem a Casa de Passagem que acolhe essas pessoas para saírem de situação e rua. “Porém, em alguns momentos eles recusam ajuda, principalmente os ‘fixos’”, comenta Fernanda Pizolio Garcia Ribeiro, coordenadora do Creas e assistente social. Segundo ela, o município só pode intervir caso a pessoa esteja causando algum dano ao patrimônio público ou privado ou colocando a vida de terceiros em situação de risco.

No mais, a orientação aos moradores que procuram o Creas com denúncias sobre essas pessoas, é para que façam um boletim de ocorrência, para, neste caso, a polícia atuar. “Fora isso não tem o que ser feito”, ressaltou Fernanda, se referindo ao grande número de ligações diárias de moradores exigindo que o município retire essas pessoas de frente às suas propriedades. “Até vamos ao local, mas no sentido de orientação, porque obrigar pessoa a sair do local não podemos”, frisou.

Outro serviço é o fornecimento de passagens, seguindo critérios técnicos estabelecidos pelo município. A prefeitura já tem algumas cidades-destino definidas para o fornecimento de passagens, que são: Engenheiro Beltrão, Goioerê e Iretama; e alguns destinos mais longos conforme a necessidade, que são: Curitiba, Cascavel, Londrina, Maringá, Ponta Grossa e Pitanga. “O que percebemos é que normalmente os trecheiros não têm um objetivo muito definido para onde ir. São vários os casos de a pessoa pedir passagem, o município fornecer, mas algum tempo depois retornar a pedir o benefício novamente”, comentou Fernanda.

Ela lembra que agora, no período do inverno, o município intensifica também a Operação Inverno. Equipes de profissionais multidisciplinares saem às ruas para a busca ativa deste moradores como intuito de recolhê-los à Casa Abrigo. Aqueles que recusam, recebem cobertor, roupas, meias, entre outras vestimentas para amenizar o frio.

Esmolas, não!

Fernanda pede ainda à população que evite dar esmolas (dinheiro) a moradores de rua. A prática, segundo ela, só potencializa eles a continuarem nas ruas. “Pedimos a sensibilização da sociedade para não dar dinheiro. Se quiser ajudar de alguma forma faça a doação para alguma entidade que atende estas pessoas”, comentou. Ela citou, como exemplo, o projeto “Salvando Vidas”, do pastor Adão. Alguns dias da semana, o projeto oferta marmitas na janta a estes moradores. “Esperamos que a população entenda nosso trabalho, entenda que a pessoa que está em situação de rua não é invisível. São visíveis. Não podemos passar pela rua e ignorar ele. E só me chamar atenção quando ele me ‘incomodar’”, diz.

Números

Pessoas em situação de rua em Campo Mourão
* Janeiro a dezembro de 2019 -10
* Janeiro a dezembro de 2022 – 56
* Janeiro a abril de 2023 – 50

Concessão de passagem (abrigo)
* Janeiro a dezembro de 2022 – 456
* Janeiro a abril de 2023 – 181

Encaminhamentos para documentos
* Janeiro a dezembro de 2022 – 85
* Janeiro a abril de 2023 – 38

Abordagens

Em 2023, foram realizadas de janeiro a abril, 123 abordagens para pessoas em situação de rua, sendo 3 mulheres, 2 transsexuais e uma pessoa acima de 60 anos.

Encaminhamento para documentação
Foram encaminhados de janeiro a abril deste ano 53 moradores de rua para a documentação civil, sendo os destinos das passagens concedidas: Goioerê, Engenheiro Beltrão, Iretama, Cascavel, Maringá, Pitanga, Ponta Grossa, Londrina e Curitiba.

Faixa etária (por idade) da população em situação de rua em Campo Mourão
18 a 30 anos
40 a 59 anos

Faixa etária por sexo
47 homens
3 mulheres