A biografia de João Berardi: o destemido homem da lei, que fazia prisões a cavalo

Nos idos de 60, João Berardi mantinha duas atividades: o campo e a polícia. A primeira era o sustento da família. A segunda, apareceu como paixão. Sem nada ganhar, como uma espécie de delegado calça curta da época, seu desejo era colaborar com a comunidade. Então, carregando um revólver 38, foi oficializado pelo governo, como o famoso “Inspetor de Quarteirão”. Agora, ele mantinha a ordem na comunidade de Três Barras, hoje, município de Nova Tebas. Na verdade, João foi bem mais que um executor das leis. Na sua caminhada, fez justiça, construiu caixões, foi um homem de família e acabou morto em combate. Tombou ao encarar uma quadrilha fortemente armada.

João nasceu em 33, no Rio Grande do Sul. Em 45, a família optou em mudar para Pitanga, no Paraná. Trabalhando na lavoura, ao lado dos pais, cresceu disposto a vencer. Já na década de 50, casou com Maria Hrcyk. Tiveram nove filhos. Estudou somente até a quarta série, do fundamental. Na luta do dia a dia, conseguiu comprar terras, onde é hoje Nova Tebas. E, com elas, manteve a família. Preocupado com a própria comunidade, foi influenciado por um amigo, já delegado de Pitanga, a colaborar com ordens de prisão na região. Pegou gosto. Nunca mais parou.

A trajetória na polícia começou em 63. Ele dividia o tempo em trabalhar no campo e atuar na ordem da comunidade. Após ser efetivado como agente da lei, colocou medo na bandidagem. João era um gaúcho, com raízes italianas. Disciplinador, não temia nada. Ninguém. Era um homem forte, com 1,86 de altura. Andava de botas, calças largas e chapéu. Mantinha uma postura firme, com atos de coragem. Não gostava de coisas erradas. Empunhava voz grossa e dava exemplos de bom comportamento. Jamais bebeu. Tomava chimarrão. Contava causos e colecionava amigos. Era um dos homens mais respeitados da região. 

João era o responsável pela delegacia local, principalmente, depois de 69, quando virou subdelegado. Uma velha casa em madeira, que abrigava uma única cela. Era ali, onde arruaceiros, valentões e assassinos, passavam os dias. Ele nunca teve medo em prender quem quer que fosse. Em 73, soube através de denúncias, que um homem estava armado na venda. Já, alcoolizado, obrigava outros presentes, a tomar cachaça. “Ele empurrava os copos de pinga, sobre o balcão, com o cano da arma, obrigando as pessoas a virá-los”, disse Divete Berardi, filho de João.

Mas as horas do valentão estavam contadas. No bar, alguém disse que iria chamar o delegado. O homem gritava: “Vou fazer esse delegado pastar, se vier aqui”. Avisado, João foi até o local. Lá, desarmou o sujeito e ainda o levou preso. O cão latiu, mas não mordeu. Trancafiado na velha cadeia de madeira, João desconfiou que os filhos quisessem livrar o pai. E decidiu dormir na delegacia aquela noite. Não deu outra. Antes da meia noite, oito filhos do sujeito aparecem.

Armados com machado, punhais, facões, facas e um revólver, diziam que livrariam o pai. Sozinho, dentro da delegacia, João gritou: “Se qualquer um deles fugir, atirem”. A voz ecoou como uma ameaça. A turma, fora, acreditou que João estivesse em companhia de outros policiais. E bastou abrir a porta, para deter os oito filhos. Eles entregaram as armas e acabaram detidos, junto ao pai. O tiro saiu pela culatra. Destemido, João ainda fez foto para comprovar o fato.

“Meu pai sempre fez justiça. Ele tinha medo apenas de cometer injustiças. Por isso, sempre investigava bem as situações”, lembrou outro filho, Élio. Conta que, certa vez, prendeu um homem que invadiu uma casa e roubou objetos da família. Inclusive, o vestido de noiva da mulher. Antes de ser detido, João o obrigou a colocar o vestido e desfilar pelas ruas da cidade. “O sujeito tomou rumo. Nunca mais roubou nada de ninguém”, lembra Élio.

Num tempo precário, nos rincões do Paraná, a comunidade não contava nem com uma funerária. Mas João sempre tinha uma saída. Por inúmeras vezes, enquanto o velório acontecia, o cadáver era colocado sobre a mesa. Ao mesmo tempo em que se ouvia o choro dos familiares, também se escutava batidas de martelo. Era João, do lado de fora, construindo o caixão. Maria, sua esposa, ajudava confeccionando as roupas do defunto. E, tudo isso, sem nada cobrar.

Contam os filhos que o pai, também conhecido por “Joani”, sempre foi uma espécie de líder comunitário. João, além de pregar a ordem, combatia injustiças. Ajudava quem precisava. Colaborava com ações à igreja. Não longe de tudo isso, ainda era um pai presente. Aconselhava e dava lições. “Era um homem simples. Mas com ideais corretos. Não admitia que nenhum de nós andasse fora da linha”, afirmou Divete.

Homem detido (em pé), na década de 60, teve oito filhos armados, tentando livrá-lo da cana. No fim, todos acabaram presos, junto ao pai

Sem carro, João atuou na polícia em um tempo de poucos recursos. Tanto é que as prisões aconteciam a cavalo. Por muitas vezes prendeu, e levou os detidos no lombo da montaria. Numa ocasião, encontrou o procurado, tomou a faca e amarrou suas mãos. Com outra corda, o levou amarrado ao burro que cavalgava, por nove quilômetros, até a delegacia. Parecia cena de filme de faroeste. Uma espécie de Clint Eastwood da década de 60.

Com o passar dos anos, já conhecido pelo trabalho na polícia, João foi efetivado, oficialmente, aos quadros do governo. Então, em 89, passou a receber salário como agente público. Mas o soldo durou apenas dois anos. Em 1991, tudo acabou com a sua morte. No combate a um sequestro, levou 40 tiros de uma quadrilha, fortemente armada.

O último ato

Em setembro de 91, uma quadrilha conhecida no Paraná, sequestrou um empresário de Maringá. Os bandidos também foram responsáveis, anos depois, por sequestrar o irmão da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano: Wellington Camargo. Após levarem o empresário, a quadrilha se refugiou em um sítio, na comunidade de Poema, em Nova Tebas.

Vendo o intenso movimento de carros na região, populares locais comunicaram o delegado, João Berardi, que algo estranho estaria acontecendo ali. Então, desconfiando de algo suspeito,  João seguiu à propriedade com outros dois ajudantes.

No sítio, avistaram a casa fechada. João e outro permaneceram no carro, dando suporte a um terceiro, que andou até o imóvel. Lá, ao gritar que era a polícia, os bandidos abriram uma das janelas e metralharam o policial. Caiu morto. Uma intensa troca de tiros teve início. João foi baleado no braço. Mesmo assim, não parou de disparar. O outro colaborador, que estava com João, se afastou para evitar ser atingido. Vendo o poder de fogo da quadrilha, se embrenhou na estrada para pedir reforço. 

Sozinho e ferido, João se escondeu atrás de uma árvore. Ele carregava um revólver e uma espingarda. Vendo que estava sozinho, dois elementos deixaram a casa e iniciaram uma caminhada, margeando a árvore. Com fogo cruzado, João até tentou revidar os tiros. Mas teve que rolar para se esconder, agora, em meio ao mato.

Acreditando terem matado os três policiais, a quadrilha decidiu levantar acampamento. Em um Verona, colocaram o refém. Dos quatro bandidos, um estava praticamente morto. Ele havia sido atingido por João. Dentro do veículo, os cinco deixaram a propriedade. No entanto, ao se aproximarem da entrada do sítio, João lá estava.

Sem munição, João apanhou um cabo de enxada e tentou quebrar o parabrisas do carro. Uma tentativa em vão. Os homens pararam o Verona. Dois deles saíram. E, com semi metralhadoras, deram rajadas sobre o delegado. Cerca de 40 perfurações. Ainda vivo, João teve o corpo esmagado com o veículo. A quadrilha passou com as rodas sobre ele, ao menos, duas vezes. Ali, a história de João Berardi, havia terminado. Morreu como um corajoso defensor da lei. Sozinho e desarmado, tentou evitar a fuga. Jamais foi reconhecido como herói de nada. A ele, apenas o consolo com nome de uma rua. E nada a mais.         

João viveu ao lado da esposa por 36 anos. Ela nunca quis que o marido seguisse na atividade policial. Tinha medo de perdê-lo. Mas, quis o destino que fosse assim. Ele morreu no dia 14 de setembro. Maria morreu em 2016, coincidentemente, em 13 de setembro. Contam os filhos que o pai era muito católico. Com fé aguçada. Um homem preocupado com o bem estar de sua localidade. Promovia ações sociais. Numa delas, a limpeza regular do cemitério. Sem muros, o lugar era invadido por animais. O limite aconteceu após uma vaca aparecer na cidade carregando nos chifres, uma coroa fúnebre. Foi a gota d´água. Depois disso, o campo santo sempre se manteve impecável.

Bom de mira, quase não desperdiçava as balas do revólver. E, em tempos de violência, tombou dois bandidos. Segundo a família, na década de 60, João também dispunha de algumas “liberdades”. Como fazer com que presos realizassem pequenos serviços à comunidade. Um deles era colocar detidos para tapar buracos em vias, ainda sem asfalto. Homem de extremo bom senso, acreditava que uma boa prosa pudesse resolver conflitos. E assim o fez, em diversas brigas locais. Em uma ocasião, um casal, ao se separar, entrou em vias de fato por causa de uma porcaria de faqueiro. Eram 11 peças. Ambos desejavam ficar com seis unidades. João pegou um garfo e o arremessou numa represa. Pronto, agora cada um fica com cinco. Assunto resolvido.

Temido pela bandidagem, não é exagero dizer que João foi um homem de muita coragem, em tempos de violência extrema. Prendeu estupradores. Peitou assassinos. Desafiou quem andava fora da ordem. Tinha o pavio muito curto. Mas sempre prezou pela justiça. Naquele 14 de setembro de 91, antes de sair de casa, fez sua oração a São João. Ele não sabia, mas seria sua última prece. Deixou exemplos de dignidade e de uma coragem sem fim. Nem todo filho, pode se orgulhar do pai que teve. Mas esse, definitivamente, não é o caso da família Berardi. Seguindo seus ensinamentos, eles continuam todos unidos, trabalhando nas terras deixadas por João.       

Atribuições aos inspetores policiais da década de 60

Um documento ainda guardado pela família de João Berardi, mostra que em 1963, através de uma portaria do governo do Paraná, ele foi oficializado como inspetor de polícia. Na época, o cargo era também chamado de “Inspetor de Quarteirão”. Isso porque, um quarteirão eram áreas com mais de 100 quilômetros de extensão. A nomenclatura surgiu em 1827, cinco anos após a Independência do Brasil. O objetivo era garantir a lei e a ordem. 

Somente em 1832, tiveram suas atividades regulamentadas e passaram também a fazer investigações, dar conselhos e resolver conflitos entre vizinhos. A função começou a perder importância a partir da Constituição de 1988 e foi extinta em vários estados. No verso do documento, o governo descreveu algumas instruções para que João desenvolvesse a atividade.

-Comunicar à delegacia a existência no Quarteirão, de loucos, criminosos, desertores das Forças Armadas, insubmissos (quando solicitados pelas autoridades); e, bem assim, de vadios, vagabundos e gatunos.
-Auxiliar os inspetores vizinhos no serviço policial.
-Resolver pequenas ocorrências que se derem no Quarteirão, procurando harmonizar as partes, encaminhando-as  à autoridade competente para solucionar o caso.
-Não tomar conhecimento de queixas relativas a fatos que sejam da alçada judicial, tais como: cobrança de dívidas, dívidas de terras, danos, despejos de casa, etc.
-Conciliar e aconselhar, quando possível, as partes que o procurarem, nas divergências surgidas entre as mesmas.
-Não permitir que os moradores do Quarteirão possuam armas sem registro.
-Não permitir a prática de jogos de azar, dentro do Quarteirão.
-Não permitir que pessoas estranham toquem em objetos de crime, os quais ficarão sob a sua guarda e deverão ser remetidos à delegacia
-Comparecer pessoalmente às festas e outras reuniões de caráter público, para manter a ordem, devendo conter os ébrios e turbulentos.

João tinha 1,86 de altura e andava sempre de botas e chapéu