A obra de Dilmar Daleffe

Em agosto, Dilmar Daleffe faria 74 anos. Ele morreu há seis. Por 21 anos ficou à frente da Santa Casa de Campo Mourão. Sempre, como voluntário. Por idealismo. Jamais ganhou dinheiro com isso. Ao contrário. Inúmeras vezes chegou a fazer empréstimos pessoais para sanar a falta de recursos da entidade. Em 2013, desiludido por disputas políticas, que envolviam a entidade, deixou o hospital. Como ele mesmo dizia, saiu pela porta dos fundos. Disse ser tratado como bandido. Veio a angústia. A tristeza. E, por fim, o câncer. Sua saída, foi também o seu fim. Ele amava a Santa Casa.   

Dilmar nasceu em 1946. Veio de uma família italiana nos fundões de Urussanga, em Santa Catarina. Pobre, rumou com os pais e irmãos a Campo Mourão, já nos anos 50. Responsáveis, começaram uma empresa de ônibus, a Real. Mais adiante, iniciaram a Auto Peças Cometa e a Dipar. Dilmar era o mais novo dos irmãos homens. Certa vez, emocionado, contou sobre a infância difícil. Ele pedia aos filhos que valorizassem o dinheiro. Quando criança, passou por grandes obstáculos. “Eu só escrevia a lápis. Porque quando chegava o final de ano, meu pai fazia apagar todo o caderno para que o usasse novamente no ano seguinte. Não tínhamos dinheiro”, disse antes de morrer.  

Aos 14 anos de idade, foi influenciado por amigos. Então, o cigarro apareceu em sua vida. Os anos passaram e com a sociedade entre os irmãos, Dilmar ficou à frente da Dipar. Sempre gostou de trabalhar. E se dedicava por isso. Sua liderança era visível. Casou na década de 60 com Maura e teve quatro filhos – Delcimara, Dilmércio, Denilson e Denise. Com uma relação conturbada, a separação veio em 83. A vida seguia. E junto a ela, o cigarro e as eternas dores no estômago. Ele nunca conseguiu largar o vício da nicotina. Do cigarro. Foram milhares deles durante a vida. Pelas contas, 52 anos fumando sem parar, cerca de 748.800 cigarros.

Na década de 80, Dilmar reuniu-se com outras pessoas da cidade para dar um novo direcionamento a Saúde pública municipal. Ele queria mais dignidade à sua população. Mesmo não sendo médico, prefeito, ou qualquer outra coisa. Aliás, desculpe, ele era apenas um cidadão. Acolheu Campo Mourão com tanto carinho, que passou a ser um desbravador de ideias e, mais que isso, de ações. Ele sentia que deveria fazer sua parte colaborando com a saúde da cidade. Poucas pessoas sabem, mas seu sonho sempre foi ser médico. No entanto, os recursos da família não colaboraram para que isso acontecesse.

Idealista convicto, foi à luta. Junto aos amigos, conseguiu a doação do terreno, onde é hoje a Santa Casa. Depois disso, de casa em casa, arrecadou tijolos, cimento, pedra, areia. Tudo servia. Era o primeiro passo à construção do Hospital Santa Casa. Em 89, fincou em seu solo a pedra fundamental. Nunca mais parou. A partir daí, terminou sua vida dedicando tempo e energia àquela instituição. Trabalhou voluntariamente para minimizar os problemas de saúde da região. Mas o que move alguém a trabalhar apenas por ideais nos dias de hoje?

No caso de Dilmar, isso era do seu espírito, da sua alma, dele mesmo. Era um cidadão. Um guerreiro de sua própria comunidade, de sua própria causa. Certa vez, decidiu sair a vereador. Já havia falado aos quatro ventos que seria um vereador sem salário. Ainda, lutaria para que os demais edis abrissem mão do dinheiro. Ele sempre acreditou que vereador não é profissão. E, por esta única razão, não deveriam receber. Na época, um dos candidatos impugnou sua candidatura. Revolucionário, por certo faria uma quizumba na Câmara.   

A luta de Dilmar, pela construção da Santa Casa, o tornou diferente. Junto a outras poucas pessoas, como os médicos Oswaldo Mauro e Laércio Daleffe, Lenilda de Assis e João Teodoro, trabalhou apenas pelo bem da sociedade. O sonho representava a possibilidade de uma Saúde melhor a todos. Era somente isso o que desejava. 

Durante os últimos meses de vida, ele abriu-se poucas vezes. Numa delas, falou sobre a maior tristeza de sua vida: a saída da Santa Casa. Disse ter saído pela porta dos fundos, principalmente, diante das articulações políticas movidas por interesses escusos. Mesmo tendo feito tudo que fez, foi tratado como bandido. Sua saída o deprimiu por meses. Psicologicamente abalado, não reagia. A nada. A doença se aproveitou do momento. E o levou. Para sempre. 

Mudança às pressas

Enquanto presidente da Santa Casa, Dilmar conseguiu unir médicos, enfermeiros, administradores, zeladores. Todos em torno daquele sonho. Ele mesmo ia até a recepção e ajudava a atender os doentes. Muitas são as histórias de pessoas ajudadas por ele. Mas um episódio não é esquecido. Ainda quando a instituição estava no antigo Anchieta, uma chuva abundante inundou o hospital. A água era tanta que rachaduras começaram a surgir. Um engenheiro da prefeitura foi chamado e disse que o prédio podia ruir. Então, Dilmar começou a gritaria. Acionou funcionários e médicos com carro. Eles levaram os pacientes. Carroceiros foram chamados para levar a mobília. Tudo aconteceu em duas horas, sob chuva, goteiras, pressão e muita emoção. O hospital foi instalado provisoriamente no Hospital São José e lá ficou até ser inaugurado em 2002, onde está até hoje.

Movido por belas ações, Dilmar no sabia dizer não. Vendedores passavam pela sua empresa, a Dipar e sabiam que ali, o alvo era fácil. E ele comprava de tudo, mesmo não precisando de nada. Somente para ajudar. Adquiria cabos de vassoura, rapadura, queijos caseiros, salgadinhos, sabão. Ajudava mendigos, campanhas absurdas, ação entre amigos. Tudo para ajudar. Até mesmo no jogo do bicho, quando ganhava, repartia com os funcionários. Ele também orava e agradecia por sua equipe da Dipar. O líder, Carlão, era pra ele uma espécie de filho mais velho. 

Atropelamento

Era véspera de Natal de 1980. A Dipar estava aberta à noite. Dilmar trabalhava no interior da loja, ainda na Capitão Índio Bandeira. Ele escutou uma freada, seguida de um estrondo. Uma criança havia sido atropelada. Dilmar pulou o balcão e sem pensar, correu até a rua. Vendo a criança estendida no asfalto, a colocou no banco de trás de seu Ford Galaxie e sumiu até Maringá. Apenas 30 minutos salvaram a criança. Esta história, apesar de heróica, não era contada por ele. Permaneceu apenas com ele. A família do menino atropelado sempre o visitou em vésperas de Natal, como forma de agradecimento. Mas o herói preferia o anonimato. Naquele dia, testemunhas presenciaram o que disse: “Campo Mourão precisa ser referência para salvar vidas”.

Dilmar sempre foi um menino. Apesar de suas responsabilidades, agia como um eterno adolescente. Contava piadas sem graça, mesmo sabendo que eram. Fazia pegadinhas, do tipo colocar um cigarro explosivo na carteira dos outros. Ironizava situações com amigos e familiares. Chamava o próprio genro de veado. Ele adorava rir. Depois de um casamento dissolvido, conheceu Sandra e com ela terminou seus dias. Danilo é o filho mais novo, fruto da última relação. Hoje está com 23 anos. Barba na cara. Quer ser médico. Exemplos a seguir. Afinal, quantos filhos tem orgulho do pai que tiveram? 

Mas a história de Dilmar também é marcada por contradições. Imagine idealizar um hospital, construí-lo para a comunidade, e, ao mesmo tempo, esquecer-se da própria saúde. Foi isso o que aconteceu. Teimoso e com medo de buscar exames – possivelmente que o obrigassem a largar o cigarro – jamais havia feito uma simples endoscopia. Quando fez a primeira, em janeiro de 2014, também foi a última. Já era tarde demais. Tivesse feito cinco anos antes, ele ainda estaria aqui. Contando suas infames piadas. 

O passado de um homem pode ser esquecido. Principalmente, se ele não fez nada por sua comunidade. A maioria das pessoas passará em branco. Mas a história de Dilmar continuará. Ele fez sua parte. Plantou uma semente. Tudo voluntariamente. Valores assim poderiam continuar. Mas pouca gente tem a coragem de levantar novas bandeiras. O dinheiro é mais forte.  

Antes de sua morte, recebeu o título de Cidadão Honorário do Paraná e de Campo Mourão. Depois de morto, Dilmar virou nome de rua. Nome de posto de saúde. Ele viveu intensamente 67 anos. Mas no dia 27 de janeiro de 2014, descobriu o tumor. Uma doença cruel. Que o impossibilitou enfrentá-la. Nos últimos 8 meses de vida, este jornalista e filho, acompanhou seu drama. Camas de hospitais. Medicamentos. Sessões de quimioterapia.  Foram horas, dias, meses de sofrimento. Numa das inúmeras sessões quimioterápicas, em Maringá, um sujeito morreu ao seu lado. Ele fazia o tratamento. Estava sentado ao lado de Dilmar. Morreu silenciosamente. Com o líquido ainda injetado na veia. Ali, naquele momento, parecia que a morte havia mandado um recado. Do tipo “Oi, estou aqui”. 

Com o câncer avançando, tudo piorava. Sem fome e, precisando comer, os filhos tentavam coisas impossíveis. Uma delas foi fazer Dilmar fumar um baseado. Dizem que, uma das consequências é ter a dita “larica”. Fome, na tradução. E ele aceitou. Depois de ficar grogue, uma leve fome surgiu. Foi o suficiente para tomar uma sopa feita pela nora. Em julho de 2014, ele foi levado a exames em uma clínica da cidade. Era final de tarde. Na volta para casa, com um dos filhos dirigindo o carro, viu-se que a coisa já estava irreversível. Passando em frente a sua empresa, ele não a reconheceu. E, ainda, disse que o caminho de sua casa era para o outro lado da cidade. O fim já chegava.   

Após meses de tratamento, a angústia acabou as 4 horas da manhã do dia 09 de agosto daquele ano, com um recado no celular. Por ironia do destino, no mesmo hospital em que doou sua vida. Um telefonema previsto. A hora havia chegado. Aquele sábado amanheceu nublado. O céu cinza anunciava algo diferente. Mas se assim tinha que ser, foi. Agora, de algum lugar, Dilmar deve estar vendo a guerra contra o tal Covid. A obra que tanto lutou em ajudar construir, está salvando vidas. Fernando Pessoa certa vez resumiu a história: “Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”.