Após dois anos, corpo carbonizado é identificado como Ricardo Grendel

Numa das gavetas geladas do Instituto Médico Legal de Campo Mourão, repousa um corpo carbonizado, desde 11 de julho de 2020. Até ontem, era descrito apenas como o número 165/20. Número recebido pelo Serviço de Medicina Legal. Mas, depois de dois anos, foi identificado como José Ricardo Grendel, suspeito de ter matado outro rapaz: Elvis Huda. O crime aconteceu em 10 de julho do mesmo ano. Mas, desde então, exames enviados ao Instituto de Criminalística do Paraná, para verificar o DNA do cadáver carbonizado, ainda não haviam chegado. A família de Grendel aguardou angustiada por 732 dias.

Ontem, Rosa, a mãe adotiva de Grendel, revelou ser tomada pela dor. Quase todos os dias. “Eu sabia que era ele. Mas o resultado não chegava nunca. Isso nos afligiu demais. Nesse tempo, tive dois derrames e fiquei sem poder andar”, disse. Rosa é uma mulher simples. Mas, mesmo na sua simplicidade, gostaria de poder sepultar o rapaz. Fazer um velório. De uma forma geral, proceder os rituais humanos. Ela foi surpreendida com a reportagem. Não sabia ainda que a identificação havia sido concluída. Agora, chegou o momento de proceder com os rituais.

O caso

Sábado, 11 de julho de 2020, 21h30. Bombeiros são acionados para combater um incêndio a uma casa às margens do anel viário de Campo Mourão. Em princípio, uma residência vazia. Ninguém à vista. Controlado o fogo, a guarnição retorna à sua unidade. Horas mais tarde, um telefonema anônimo indica a presença de um corpo carbonizado sob os escombros. E, um segundo cadáver, jogado num poço de quase 20 metros, também na mesma propriedade rural.

A suspeita era que o corpo carbonizado fosse José Ricardo Grendel, de 40 anos. Ele vivia na residência. O segundo cadáver, depois de quatro dias de intensas buscas, foi retirado do poço. Era Elvis Huda. Um jovem de 24 anos com deficiência intelectual. Elvis estava desaparecido desde 10 de julho. Mas, pelo que tudo indica, o rapaz foi levado com a promessa de ganhar um celular. A propriedade fica próxima a casa de sua família, no conjunto Avelino Piacentini.

Grendel sempre foi um problema para a família. Filho de Tereza, ela o rejeitou ainda no hospital, quando nasceu. Foi adotado pela tia, Rosa, irmã de Tereza. Relatos de familiares indicam que a mãe biológica tinha depressão. “Ela o amaldiçoou ainda no ventre. Não queria o filho. Dizia que iria dar trabalho”, disse o pai adotivo, Sebastião. Aos nove anos, o menino já iniciava os passos nas drogas. Foi nesse mesmo período que decidiu abandonar a escola e traçar seu próprio caminho. Um caminho sem volta.

A família residia na chácara onde ele foi encontrado morto. Mas em 2011, Rosa e Sebastião venderam a propriedade. Buscaram a cidade. Grendel, por conta própria, teria conversado com o novo dono, tendo permissão para lá continuar a morar. Desde cedo, além das drogas, sofria com a dependência do álcool. “Ele bebia demais. Era muita cachaça”, relata Sebastião.

O vício transformou José numa ameaça à própria família. Os pais adotivos contam que sofriam roubos dentro da casa, pelo próprio filho. Não bastasse isso, ainda eram ofendidos e ameaçados de morte. Com medo, buscaram uma medida protetiva junto a justiça. “Ele dizia que tinha dó da gente. Mas não podia fazer nada”, lembra Sebastião.

Os pais são gente simples. Honestos. Sebastião tem 70 anos e sempre foi da roça. Na cidade trabalhou como jardineiro e ensacador. Aos 76 anos, Rosa sempre foi do lar. Hoje, os dois são aposentados. Levam uma vida sem regalias. Sem luxo. E ainda sofrem de diabetes. Rosa se recupera de dois derrames ocorridos simultaneamente, há dez meses. Mesmo distantes do filho, não queriam que morresse. Ao contrário.

Queriam que se reabilitasse. Que tivesse uma vida normal. E as tentativas pra que isso acontecessem não foram poucas. Rosa lembra que internou José por três vezes em Curitiba. “Ele ficou três meses internado para parar com o vício. Mas não adiantou”, disse. Por algumas vezes, os pais receberam traficantes no portão da casa. Eles cobravam dívidas do filho. “Tínhamos que pagar as contas”, lembram.

Sebastião e Rosa sempre visitavam Grendel na chácara. Eles tinham medo que o filho não tivesse o que comer. Então levavam uma cesta básica. A última visita aconteceu no dia 7 de julho. Quatro dias antes da morte. Sebastião lembra que, mais uma vez, o aconselhou. “Sempre doeu muito vê-lo naquela situação. Às vezes pedíamos que viesse morar com a gente de novo. Naquele dia ele chorou comigo”, disse Sebastião. O pai contou a história bastante emocionado. E chorou por várias vezes.

Aos 40 anos de idade, Grendel morava junto a uma mulher transgênero, Adalberto de Alencar. Ou apenas, “Bete”. “Já tinha uns 20 anos que eles moravam juntos”, disse o pai. Mas recentemente, haviam se separado. Por causa das drogas, o rapaz foi preso por roubo algumas vezes. Numa delas, por levar uma bicicleta. Mesmo dentro da casa dos pais, José roubava. Tudo para comprar os entorpecentes. Sebastião e Rosa jamais o denunciaram. Resistiam calados à vida errada do filho. Tudo pelo amor, jamais interrompido.

Dois meses antes de sua morte, o rapaz foi preso. Ele dirigia um carro roubado. Também não tinha habilitação e ainda estava alcoolizado. Os pais indagam sobre quem teria pago a sua fiança. “Não entendemos. Quem deu esse carro pra ele dirigir. E quem pagou a fiança”, questionam. Sebastião acredita que o filho acabou amaldiçoado pelas juras de ódio da mãe biológica, Tereza. Uma espécie de predestinação. Segundo ele, ela jamais teve carinho pelo filho e morreu há cinco anos, vítima de câncer. Ela se foi. Mas o filho continuou preso ao seu mundo paralelo. Uma escolha própria, onde as vítimas agora, acabaram sendo os pais adotivos.

Elvis Huda

Elvis já era um adulto. Mas uma criança continuava dentro daquele corpo. Um corpo de 24 anos, encontrado jogado a um poço de 20 metros. Tinha deficiência intelectual. E era aluno da Apae rural de Campo Mourão. Era como um menino. Inocente. Brincalhão. Jamais havia sumido de casa. Mas no dia 10 de julho, desapareceu. E não deixou vestígios.

Conta um tio, que preferiu não ter o nome revelado, que Elvis gostava de andar de bicicleta. Sob os cuidados da mãe, não saía de perto da casa. Às vezes ia até a residência de parentes. E eles logo avisavam a mãe. O jovem também tinha paixão por celulares. Quando via um, perguntava o preço. Questionava sobre aplicativos. Coisas de menino curioso.

Para familiares e amigos, ainda é uma incógnita como Elvis foi parar na casa de José. Informações indicam que os dois foram vistos juntos próximo ao conjunto Avelino Piacentini, onde reside a mãe. No entanto, tudo leva a uma possibilidade: Elvis foi levado inocentemente à morte. As circunstâncias ainda não estão claras. Mas certamente, estava no lugar errado e na hora errada.

A mãe, Nádia, na época do crime, não acreditava no que havia acontecido. A ficha parece não ter caído. Trata-se de uma mulher simples, de 41 anos. Com Elvis, eram cinco filhos. Ela não imagina como o menino chegou até a propriedade. Tudo ainda é mistério. A família reside numa casa humilde, em alvenaria, entre as dezenas do Avelino Piacentini. Nádia sempre foi do lar. O marido sempre trabalhou na construção civil. Juntos, viveram dias escuros. Difíceis. O filho especial não está mais aqui. Dor e angústia agora habitam a residência.

A identificação do corpo de Elvis aconteceu na manhã de 17 de julho. Foi assassinado com quase 30 golpes de faca. À tarde, às 16h30, sob um calor de quase 30 graus, Elvis foi sepultado. Um dia de céu azul. Mas o “clima” estava cinzento. Uma cerimônia rápida. Caixão lacrado. Cerca de 50 pessoas acompanharam o cortejo. Os pais não apareceram. Entre lágrimas e consternações, a dúvida: o que aconteceu? Como o jovem foi parar na chácara? Quem o matou?

Elvis era um garoto especial. Ele foi assassinado e teve o corpo jogado em um poço

“Bete”

Adalberto de Alencar, 56, mais conhecido como “Bete”, ou “Betinha”, conviveu com José por 19 anos. Até fevereiro de 2020, moravam juntos na chácara. Mas a relação terminou com uma briga. “Bete” disse que não aceitou as acusações que recebeu. “Me disse que eu fazia ele passar vergonha. Porque eu era viado. Então deixei ele lá, sozinho”, explicou.

O casal vivia na propriedade desde 2015. Sozinhos, conviviam bem. Isolados. Cuidavam das plantas, dos cães e de um gato. Também bebiam e, segundo ela, José usava crack. “Ele não era viciado. Não fumava todo dia. Mas o álcool sim. Ele bebia demais. Não se controlava. E ainda ficava agressivo”, revelou. Numa das vezes, ameaçou matá-la. E jogar seu corpo no poço.

“Eu era o freio de mão do Ricardo. Quando via que ia passar do limite eu o segurava”, lembrou. “Bete” estava emocionada durante a entrevista – realizada em 2020. Revelou que perdeu tudo o que tinha. “Ele era meu irmão. Meu companheiro. Meu amigo. A gente se dava muito bem”. Segundo ela, a última vez que o viu, foi no jardim Copacabana, 30 dias antes do seu “desaparecimento”. Eles se encontraram num bar. José havia bebido. E estava agressivo. “Me ameaçou de morte naquele dia”, lembrou ela.

Carros furtados

No dia de 5 de maio de 2020, Grendel foi preso pela Polícia Rodoviária Estadual de Peabiru. Ele estava dirigindo um Honda Civic na PR-158, rodovia entre
Campo Mourão e Peabiru. Conduzia bêbado, zigue zagueando a pista. Policiais tentaram abordá-lo. Ele fugiu. Uma perseguição começou. Então, parou o veículo próximo a uma mata e tentou escapar. Mas foi alcançado. Verificou-se que o carro era furtado.

Grendel acabou confessando que havia mais um automóvel furtado na chácara. Também lá estavam alguns amigos. E eles poderiam estar armados. Os policiais requisitaram apoio aos militares de Campo Mourão. Ao chegar, encontraram um Ford Fiesta, também com queixa de furto. Os veículos foram levados. E Grendel, preso. Mas saiu em liberdade após pagar fiança. Segundo relatos, os amigos não estariam mais na chácara. O Honda Civic havia sido levado no dia 01 de maio de 2020. E o Ford Fiesta, em 21 de abril do mesmo ano. Ambos na área central de Campo Mourão.

Propriedade

A propriedade rural está distante de tudo e de todos. Cercada por árvores, a casa tinha três cômodos e nenhum luxo. Tijolos sem reboco, plantas ao redor e muita privacidade. Sem vizinhos, local ideal para o uso de drogas. E, quem sabe, para um duplo homicídio.

Com o incêndio, agora constatado como criminoso, tudo foi queimado. Não restou nada além do corpo carbonizado e de alguns cães sem raça. Os bichos continuaram na propriedade durante às buscas no poço. Pareciam curiosos. E estavam famintos e sedentos. Pelo chão, restos de ossos. Uma arcada, provavelmente de gato. Outros, de boi. Bonecas, algumas sem cabeça, foram verificadas ao redor.

Buscas

Com a informação anônima de que um corpo estava no poço, bombeiros fizeram uma operação de guerra. No primeiro dia de buscas, domingo dia 12 de julho de 2020, máquinas retiraram quase 20 caminhões de terra ao lado do buraco. Depois disso, soldados iniciaram a remoção dos resíduos que haviam caído no seu interior. Com abertura pequena, apenas um militar adentrava a fenda. E, com a ajuda de um balde, removia a terra. Balde a balde. Foram 12 metros ao todo retirando a terra.

Na segunda, dia 13, os trabalhos continuaram. Novamente, numa jornada cautelosa e técnica. Lonas foram colocadas nas encostas para evitar deslizamentos. Tapumes também entraram em cena para garantir o trabalho. Em média, cada bombeiro permaneceu 45 minutos no buraco. Cilindros de oxigênio foram utilizados. Gases tóxicos foram detectados.

No terceiro dia de buscas, terça dia 14, nada ainda havia sido localizado. Mas os baldes continuavam sendo retirados. Somente na quarta, dia 15, é que foram encontrados os primeiros vestígios do corpo. Era a confirmação que os bombeiros precisavam. O cadáver foi finalmente removido e levado para perícia. O odor de decomposição era muito forte. O corpo estava sob a água há pelo menos cinco dias. Uma vez descoberto, ali, naquele momento, a alma inocente do “menino” de 24 anos, começava a ficar em paz.

Ação policial

No dia 28 de julho, a Polícia agiu rápido e prendeu um jovem de 18 anos, com as iniciais J.F. De acordo com o delegado Nilson Rodrigues da Silva, ele confessou ter matado Grendel ao lado de outro menor e dois maiores. Conhecido da família de Elvis, decidiu por conta própria encontrar o amigo. Então chegou à chácara. Lá, teria encontrado Grendel com a roupa ainda suja com sangue de Elvis. J.F. teria obtido a confissão. Segundo ele, Grendel matou e jogou Elvis no poço. Depois disso, foi a vez de Grendel ser morto a facadas. Por fim, J.F. levou o corpo até a cama e ateou fogo ao colchão.

Após ter confessado matar Elvis, Grendel acabou pagando com a mesma moeda de sua crueldade. Foi brutalmente assassinado. E o corpo queimado junto a casa incendiada. Tudo foi destruído. Inclusive, todas as lembranças e pertences que remetessem, um dia, ao nome José Ricardo Grendel: o assassino de Elvis Huda.

O fato explica o telefonema anônimo direcionado aos bombeiros, na madrugada de 11 de julho. O autor, ou autores da execução de Grendel, sabendo do corpo no poço, informaram as autoridades. E, ainda, notificaram os bombeiros sobre o cadáver não encontrado na casa.

Segundo informações repassadas pela Polícia Civil, o Ministério Público já ofereceu denúncia à justiça. Uma ordem de prisão aos quatro suspeitos da morte de Grendel pode sair a qualquer momento. Eles jamais foram presos. Enquanto a justiça não se manifesta, é hora da família proceder com os rituais humanos e, depois de dois anos, sepultar Ricardo.