Como não falar de Sandra?

Do outro lado do mundo uma brasileira, de Araruna, vem fazendo a diferença entre os ditos humanos. Há 15 anos ela decidiu apostar as poucas fichas numa vida melhor na Espanha. Embarcou rumo a Barcelona. E lá, longe de sua cultura, a coisa não foi fácil. Mas vendo a situação de outros brasileiros que, definitivamente, comeram o pão que o diabo amassou, decidiu ajudá-los. Hoje, passou a ser uma referência. Sandra é um dos raros casos em que, acreditar em humanos, ainda é possível.

Bastante querida pela comunidade brasileira em Barcelona, Sandra sempre foi humilde, modesta, singular. Mesmo à entrevista, disse não ser especial o suficiente a ter sua história narrada. Nasceu em Araruna em 1975. Os pais, Valdemar, um vassoureiro, e Mercedes, merendeira da escola, sempre foram simples. Uma família trabalhadora, mas sem recursos financeiros. O casal teve cinco filhos.

Ainda menina, Sandra terminou os estudos. Ao mesmo tempo, se dedicou à igreja. Mas cresceu com medo. Cresceu vendo o pai beber. E os resultados, não eram bons. “Ele ficava muito agressivo. Por vezes presenciei minha mãe ser agredida. Era muito triste aquilo. Não dormia com medo dele”, disse.

Sandra trabalhou desde cedo em uma farinheira e, depois, como balconista. No entanto, buscando saídas de emergência, deixou Araruna, ainda na década de 90, e se fixou em Campo Mourão. Lá, passou a trabalhar como “sacoleira”. “Eu ajudava uma loja de brinquedos. Toda semana ia ao Paraguai trazer mercadorias”, disse. Mas se sentindo “pressionada”, se afastou. O trabalho também a prejudicou na curta temporada em que cursou Tecnologia Ambiental, no antigo Cefet, hoje Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

Foi então que o tempo ditou o destino. E ele a levou agora a Maringá. Lá atuou no ramo de brinquedos pedagógicos. Grana curta e contas demais. Chutou tudo. Emprestou dinheiro, comprou passagem e desapareceu ao antigo continente. A esperança em dias melhores era o único objetivo. E o destino, mais uma vez, já estava traçado.

Na Espanha foi bem recebida. Já tinha alguns amigos por lá. Sua sorte. Em um mês já ganhava 400 Euros limpando apartamentos. E assim continua até hoje. Mas já sofreu aliciamento à prostituição. Uma conversinha furada, logo descartada, para fazer certas “massagens”. “Disse não. Meu objetivo sempre foi ganhar a vida dignamente”, disse. Com o tempo alastrou o rol de amizades. Conhecida como “Nega Luxo”, fez fama de boa gente, honesta. Ganhou Barcelona. E mesmo em um país diferente, seu coração continuou grande. Do mesmo tamanho quando ainda morava na pequena Araruna.

Amigos

Cristo Vieira é um pernambucano. Deixou o Brasil há sete anos. Há seis conhece Sandra. E mantém uma verdadeira adoração à amiga. “Ela ajudou muita gente aqui em Barcelona. Pessoas que vinham com um sonho e encontravam dificuldades. Ela é uma referência em ajudar o próximo”, disse. Cabeleireiro, Cristo revela uma mulher cheia de vida, animada, capaz de repartir o pouco que possui. Do tipo que compartilha o rango do próprio prato. E com gente que nem conhece.

A ajuda vem de todas as formas. Seja a quem não consegue trabalho. Quem não tem onde dormir. Ou apenas, para uma simples refeição. Sandra jamais mediu esforços a contribuir ao bem de quem precisa. “Ela está sempre a disposição para ajudar. Leva alegria. E não tem coragem de pedir nada a ela mesma. Só pede aos outros. Uma espécie de mãezona”, explicou Cristo. Os dois se conheceram através da Escola Unidos de Barcelona. Uma roda de samba em plena Europa, a qual Sandra era a Porta Bandeira. Ponto de encontro ideal para lembrar do que deixou. Do cheiro de sua terra.

“Uma vez estávamos em um bar e a dona distribuía alimentos a brasileiros. De repente a Nega Luxo chegou com uma moça e a apresentou a todos nós. Pensei que era amiga dela. Mas não. Havia acabado de conhecê-la. Dias depois, Sandra já tinha conseguido trabalho para ela”, disse Cristo.

Mulher forte, Sandra não aceita injustiças. Ainda mais com brasileiros submetidos a uma espécie de “escravidão”. “Muitas pessoas chegam até mim contando suas histórias. De trabalho escravo mesmo. Eu não aceito. Trabalhando apenas pela moradia e comida, sem salário. Já teve uma vez que tiramos uma brasileira quase escravizada por outra brasileira. São pessoas que se aproveitam da vulnerabilidade das outras. Isso não pode acontecer. Não podemos ficar indiferentes a isso”, explicou.

Sandra Regina da Silva, aos 46, não pensa mais em morar no Brasil. Ela já se acostumou ao “velho mundo”. Mesmo assim, deve retornar a Araruna até o início do próximo ano. Apenas para rever familiares e amigos. De certa forma, resgatar o passado. Quando chegou a Barcelona não sabia nada: língua, costumes, confusões políticas envolvendo a Catalunha – que busca sua independência. Mas agora, tudo está certo. Já se considera uma, digamos, espanhola. Mas com ginga e coração brasileiros.

A empatia de “Nega Luxo” – apelido em virtude de sempre dizer que isso ou aquilo é um luxo -, fez com que muitos brasileiros de Barcelona a ajudassem a comprar a passagem de ida e, principalmente, da volta ao Brasil. Eles a consideram como uma irmã. No Brasil, após 15 anos distante, ela não mais verá os pais. Valdemar morreu em 1993 por problemas no coração. Mercedes em 2000, vítima de câncer.

“Continuo sempre pobre. Mas uma pobre feliz. Ajudando quem precisa de mim. Tento integrar brasileiros no mercado de Barcelona. Porque quando a pessoa chega aqui ela fica perdida. É difícil alguém confiar em quem acabou de chegar. Faço pelas outras o que fizeram por mim quando cheguei. Tive muitas mãos em meu favor”, disse Sandra. Ela já cantou em bares da cidade, sempre descolando um extra. Mas isso ficou. Agora só limpa apartamentos. Ela é sua própria empresa.

E boas notícias devem chegar em breve. Sandra está namorando sério. Pensa em juntar os trapos e, quem sabe, se casar no próximo ano. Ela acredita em Deus e, por isso, sabe que Ele traçou um caminho para que encontrasse uma nobre alma. Então, em 2022, festa em Barcelona.

Amizade eterna

Caio Eduardo Dos Santos tem 30. Curitibano, chegou a Barcelona em 11 de dezembro de 2018. Como todo brasileiro, chegou em busca de novas oportunidades, de uma vida melhor. No frigir dos ovos, com uma mão na frente e outra atrás. “Como todo imigrante, não sabemos o que nos espera e o que teremos que enfrentar. A dificuldade do idioma, as diferenças culturais, a comida, tudo tem um peso dobrado na adaptação”, disse.

Em março de 2019 passou pelo pior período em Barcelona. Com a volta do único amigo ao Brasil, ficou sozinho na cidade e, ainda, sem falar fluentemente o idioma. Para piorar, com recursos financeiros no ralo. As consequências acabaram numa depressão. Uma grande depressão. “Cheguei a ficar desorientado, sem ninguém pra conversar”, lembrou.

Em fevereiro do mesmo ano, no Carnaval, o amigo que voltou ao Brasil fez um pedido a Sandra: “Nega, por favor, cuida do meu amigo. Ele está ficando sozinho aqui em Barcelona. Passando por uma fase difícil e precisa de ajuda, conhecer pessoas. Ele está depressivo”.

“Na mesma semana Sandra me mandou uma mensagem, me convidando pra sair almoçar. Queria me mostrar a cidade. Saber um pouco da minha história e me apresentar amigos. Minha vida mudou”, revelou. Mudou porque Caio estava numa cidade do outro lado do mundo, de quase dois milhões de habitantes, sozinho. “E uma pessoa que não conhecia minha história, que não sabia quem eu era, que não me pediu nada em troca, resolveu segura minha mão e me ajudar no momento mais difícil da minha vida. E nunca. Nunca me pediu nada em troca”, disse.

Mais do que um gesto de humanidade, Sandra abriu as portas de sua casa. Acolheu Caio como família. E zelou dele como se fosse um irmão. “Ela me ajudou a superar os momentos difíceis. Me apresentou pessoas que me ajudaram no meu processo de documentação, já que eu não era legalizado no país. Passei a fazer parte de uma família. Uma família de amigos de pessoas de todas as partes do mundo. Que estavam unidos e que se conheciam todos, através de Sandra”, contou.

Para Caio, Sandra semeia alegria. Possui uma capacidade enorme de agregar amigos. Tem um coração enorme e jamais fez distinção de pessoas. “Em todos os meus momentos de dificuldade ela esteve presente. Me incentivou. Me deu coragem pra seguir. Colo pra chorar. ELA não é somente uma amiga. É uma Irmã que a vida me presenteou. Sou extremamente grato por ter a oportunidade de compartilhar minha história com ela. Ela marcou a vida de muitas outras pessoas. E é por isso que é tão amada e respeitada em Barcelona”, disse Caio, bastante emocionado.