Gerson, o pagador de promessas

Gerson sempre foi um destemido e pobre trabalhador brasileiro. Honrou os exemplos de honestidade e herdou a religiosidade cristã dos pais. Com uma fé gigantesca, superou quatro acidentes vasculares cerebrais, os conhecidos avcs. Ficou sem falar, sem andar, embora jamais perdesse as esperanças. Esperanças na própria fé. Agora, falando e andando normalmente, é hora de pagar a promessa: percorrer 1,1 mil quilômetros a pé, de Campina da Lagoa, no Paraná, até Aparecida do Norte, no interior paulista. E ele estará bem acompanhado.

A jornada começou ainda na madrugada da última sexta, dia 08. Carregando poucos pertences – um carrinho de feira, duas mochilas, uma barraca e uma espécie de cajado -, pretende uma viagem longa, mas de intensa interação e meditação com Deus e Nossa Senhora Aparecida. E há tempo o suficiente para se entenderem. Segundo Gerson, todas as graças foram alcançadas após pedir as suas intervenções. E quem pode duvidar?

Gerson Carlos de Aguiar Correia ainda é novo. Aos 46, é casado e possui dois filhos. Nasceu e foi criado na pequena Campina da Lagoa – 100 Km de Campo Mourão. Lá, trabalhou na agricultura ao lado dos pais e irmãos. É o terceiro de seis. Estudou até o segundo grau. Mais adiante se transformou em motorista de ônibus e caminhão. Quase sempre ganhou a vida assim.

Há dois anos e meio, perdeu a mãe, Tereza. Era sua companheira em romarias até Aparecida do Norte. Tereza também trabalhou na agricultura ao lado do companheiro, José. Depois se transformou em professora rural. Ao sair do campo, o marido virou pedreiro. Hoje, está aposentado.

Mas a vida na estrada, conduzindo os “brutos”, foi pausada. Em 2011, numa das viagens até o Mato Grosso, Gerson teve o primeiro avc. Com problemas de pressão alta e diabetes, foi derrubado após receber a notícia de que “perderia” o próprio caminhão. “Eu havia o comprado. Paguei R$ 90 mil e fiquei de pagar outros R$ 40 mil em alguns meses. Mas o proprietário apareceu e levou o veículo, antes mesmo de eu pagar o valor final”, disse.

A notícia o deixou muito nervoso. Foi o início do avc. Hospitalizado, saiu vivo, mas com a fala totalmente comprometida por dez meses. “O médico disse que para eu voltar a falar teria que me submeter a uma cirurgia. Teria que retirar um coágulo do cérebro. Mas não dava garantias que eu sairia vivo”, disse.

Sem conseguir falar, Gerson então apanhou uma caneta, um papel e escreveu ao doutor: “Não farei a cirurgia. Vou até Aparecida do Norte pedir à Nossa Senhora que me ajude”. E assim o fez. Ao lado da mãe, Tereza, do pai, José, da esposa Vilma, e dos dois filhos, entrou num ônibus de romeiros e chegou até lá. Até então, se comunicava apenas com gestos e com a escrita.

4 de novembro de 2011, o dia do milagre

Ao chegar no Santuário, Gerson deixou a família na porta santa, se ajoelhou e, devagar, percorreu todo o corredor até o santo altar. Lá, após preces, orações e pedidos, retornou. “Encontrei minha esposa, meu pai, minha mãe e meu filho mais novo. Mas não vi o mais velho. Então perguntei onde estava o Eduardo. E a minha voz saiu. Minha esposa não acreditou. Aliás, ninguém acreditou”, lembrou.

Horas mais tarde, já dentro do ônibus, prestes a voltar para casa, uma senhora o questionou: “Você não rezou o terço para retornar”. Com o coletivo em movimento, ainda com a voz fanha, fina, apanhou o microfone e, quando ia iniciar a prece, olhou pela janela e avistou o santuário. “Me despedi mandando um beijo à minha mãe, Nossa Senhora Aparecida. Mas quando falei a palavra mãe, minha voz voltou ao normal. O milagre tinha acontecido. Então, com o microfone na mão, conclui o terço”, disse.

Em Campo Mourão, Gerson fez suas orações no Santuário, da Vila Urupês

Gerson sempre foi um homem de muita fé. Católico praticante, devoto de Nossa senhora Aparecida e Santa Terezinha, lutou a vida toda para manter a família. Em sua jornada, jamais a grana sobrou. Também não faltou. Mora numa pequena casa em alvenaria, aos fundos do imóvel do pai. Pagou o financiamento a duras penas. As prestações acabaram recentemente.

Sua vida foi com dificuldades, como a maioria dos brasileiros. Comum a tantos outros humanos, descobriu com o tempo uma de suas maiores alegrias: cantar e divertir as pessoas. Por algum tempo, nem isso pode mais fazer. Mas agora, tudo voltou ao normal. No domingo, ele chegou a Campo Mourão quase ao meio dia, pela rodovia de Farol. Andando sempre pela contra mão – sabedoria e ensinamentos da estrada -, foi encontrado pela TRIBUNA sentado num dos abrigos de passagem – ponto de ônibus -, em frente à Vila Mendes.

Este repórter já o entrevistava desde a última sexta, através do celular. Faltava uma foto para encerrar o trabalho. Marcado o encontro, notou-se um homem de extrema e inabalável fé. Gerson estava cansado. Vestia uma camiseta com Nossa Senhora. Tinha um dos tênis já abertos pela caminhada dos 100 primeiros quilômetros. Roupas úmidas da chuva. Mas uma enorme vontade em seguir adiante.

Falando sobre o passado, se emocionou diversas vezes. Os olhos verdes acabaram inundados por lágrimas da cor da chuva. E nada o impedirá em concluir sua missão. “Faço isso também pela minha esposa. A amo muito. Ela queria vir comigo, mas preferi que ficasse. Sempre ficou ao meu lado nos piores momentos da vida”, disse. Segundo ele, Vilma ficou em casa para cuidar do neto. Aos 49 anos, a esposa sempre trabalhou como doméstica. “Ela aceitou que eu fizesse a caminhada. Está do meu lado, mais uma vez”, disse.

Histórico de avcs

Em 2014, um outro avc atravessou seu destino. Mas leve comparado ao primeiro. Dois anos depois, em 2016, um terceiro, também superado. O último aconteceu em julho desse ano, no dia mais frio do inverno. Gerson trabalhava num aviário de Campina da Lagoa. Quando lá chegou, pela manhã, viu uma das cenas mais lamentáveis de sua vida: mais de três mil aves haviam morrido de frio.

“Fiquei tão chocado com aquilo que acabei nervoso. Comecei a passar mal. Era o início de um novo avc. Não deu outra”, disse. Hospitalizado mais uma vez, deixou a cama vivo. Mas com sequelas graves no lado direito do corpo. Não conseguia andar. E, para piorar o quadro, a voz foi afetada novamente.

Mas um homem de fé tem saídas. São as chamadas “armas divinas”. Pediu piedade a Nossa Senhora Aparecida. Clamou ajuda. Fez orações. Dias depois, outro milagre: voz e movimentos reestabelecidos. “Nesse mesmo período também solicitei ajuda divina à minha nora. Grávida, estava com dificuldades no parto. E tudo foi resolvido da melhor forma. Fui atendido de novo”, disse. “Agora é hora de pagar minha promessa. já recebi as graças”.

A missão não será fácil. Pelas contas serão 40 dias a pé, sempre pelos acostamentos da vida. Dormirá pouco e se alimentará com a ajuda de pessoas. Carrega poucas coisas, como uma barraca, coberta, roupas e produtos de higiene pessoal. Um carrinho de feira é tudo o que tem para ajudar nas tralhas. Ele também leva um celular, ferramenta indispensável para manter contato com a família.

Disposto a ajudar, Gerson sempre se utilizou das orações para colaborar com amigos. “Eu gosto de rezar pelas pessoas. Já ajudei e continuo ajudando muita gente. Sinto que preciso disso. Tem muita gente que precisa de ajuda”, afirma. Há dois meses, quando teve o último avc, ele achou que não andaria mais. No entanto, certo do seu propósito, foi mais uma vez abençoado.

“Sei que Deus tem um propósito pra mim. Nessa caminhada não estarei sozinho. Seremos eu, Deus e Nossa Senhora Aparecida. Até lá terei toda a intimidade com eles, principalmente, através da meditação. Estou levando fotos, pedidos de oração e todos que amo nessa jornada”, disse.

A passos lentos, Gerson deve vencer cada quilômetro com determinação e fé. Não será fácil. Estará a mercê do mal. Mas sabe que não estará sozinho. Um homem abençoado vence tudo. E como disse o pensador Thiago de Mello, “Não tenho um caminho novo. O que eu tenho de novo é um jeito de caminhar”.