João, o homem que transformava tragédias em comédias

João sempre foi um homem comum. Nunca foi famoso. E, entre ser um intelectual ou um sujeito com bolsos fartos, preferiu ser ele mesmo. Nasceu num berço de pais lavradores. E, ao lado deles, aprendeu ainda menino, a colher café. Cresceu num ambiente rural e, por ele, dedicou a vida. Menino levado, nunca foi santo. João era bem mais que um homem comum. Carregava consigo uma alegria difícil de se ver. Transformava momentos difíceis em um leve sopro de felicidade. E, mesmo submetido a intensas sessões contra o câncer, ainda tinha ânimo em contar piadas pelos corredores do hospital. A bem da verdade, João era especial demais pra esse plano terreno.

João Serafim de Souza nasceu em maio de 47, em Tabapoã, interior de São Paulo. Filho de lavradores, perdeu a mãe ainda aos quatro anos. Acabou criado por Maria, a irmã mais velha. Aos 14, já iniciava uma jornada própria em fazendas daquela região. Aprendeu a lidar com o gado. Gostou, se aprimorou. Já, “homenzinho”, aos 15, fez cursos sobre inseminação. Nunca mais parou.

Na fazenda Água Milagrosa permaneceu até os 19. Mas logo se transferiu a outra propriedade. E era lá, embora não soubesse, onde encontraria o amor de sua vida: Miguela. Morando numa das pensões da fazenda, a conheceu. Não largou mais. Ela gostava de João. Mas o seu pai, definitivamente, não. Então aos 21, pediu à moça que arrumasse as malas e o encontrasse numa quermesse. A ideia era roubá-la do “sogrão”. Com os planos arquitetados, montou no cavalo e seguiu rumo ao encontro. Mas nem tudo eram flores. Haviam espinhos na empreitada.

Numa das curvas da quiçaça, o animal refugou. João caiu. Naquele momento, carregava um velho radinho a pilhas Eveready, quando escutava um programa da época. O aparelho partiu-se ao meio. Mesmo assim, ao chão, esfolado e sem saber o que acontecia, continuava a ouvir a voz do locutor. Ele dizia que o rádio insistia em funcionar, mesmo em duas partes. Coisas de João.

Passado o susto, montou no cavalo e seguiu até a quermesse. Lá, encontrou Miguela. Com a mala pronta, não pensou duas vezes e levou a moça. Ela tinha apenas 15 anos. Podia não saber, mas aquele era o primeiro e o único homem de sua vida. Morando agora com João, o pai virou uma fera. Era hora de honrar as calças. João foi até o sogro e, de peito aberto, encarou o “sinhozinho”. E tudo foi resolvido.

João e Miguela se casaram em 1969. Em 74, ele recebeu uma proposta de emprego numa fazenda de Querência do Norte, no Paraná. Aceitou. Trabalhando com gado, sustentou a esposa e quatro filhos: Marilda, Eder, Claudinei e Elaine. Foi mais que um profissional. Respeitado, também foi administrador de fazendas por onde andou. Participou de muitos leilões e exposições de gado. Voltava sempre com troféus.

Disciplinador, não poupava críticas aos quatro filhos. Afinal, queria o melhor à sua prole. No entanto, mesmo ditando as regras da casa, nunca deixou de ser um gozador. Era a própria piada em pessoa. A diversão da turma. Emendava um “causo” atrás do outro. Em suma, sempre foi um bom contador de histórias.

A chegada à região de Campo Mourão aconteceu em 1981, quando foi contratado pelo produtor rural Celso Ferrari (in memoriam). Anos mais tarde passou por outras fazendas, agora de Campo Mourão. Não é exagero dizer que João sempre foi um homem da roça. Ele buscava evitar a cidade. Mas como tudo que começa, um dia acaba, João se aposentou. E a aposentadoria, de certa forma, mexeu com sua cabeça. Aliás, muito.

Vivendo agora em uma casa alugada em Campo Mourão, ele acabou sofrendo sem o ambiente rural. E, sem trabalhar, era hora de ocupar a cabeça com outra coisa. Não prestou. Descobriu nos bares uma espécie de saída de emergência. Passou a beber todos os dias. E é lógico que a coisa não daria certo. João era tão fiel a Deus que orava em casa, mesmo embriagado.

“Ele bebia todos os dias. Voltava pra casa trançando as pernas. Pra não escutar, ia direto ao banho. Depois jantava e ia dormir. Sempre foi assim”, disse o filho Eder. Mesmo vivendo a plena liberdade de sua aposentadoria, os caminhos traçados tiveram consequências. Em janeiro de 2020 a família descobriu um câncer no estômago. Era o início de uma grande guerra.

Submetido a uma série de exames, João deixou a bebida. Ele observou que, agora, era ele ou o álcool. Pra piorar, o diagnóstico indicava arritmia cardíaca e diabetes. Exames apontaram a necessidade de uma cirurgia. O objetivo era extrair parte do estômago, onde se concentrava o tumor. Mas aí surgiu a tal pandemia. Veio o vírus e acabou até mesmo, com as chances de sua operação. Mesmo diante das péssimas notícias, mais uma vez, João transformou a tragédia em comédia. Fazia piada com a doença. Brincava e jamais se abateu diante do quadro em que se apresentava.

Eder conta que o pai não demonstrava tristezas. Simplesmente, porque não as tinha. Ele lembra que, por volta de 2002, João teve a notícia de ter contraído hanseníase. Ao mesmo tempo, Miguela, hepatite. As notícias caíram como a uma bomba. “Na nossa frente ele continuava firme, rindo, brincando. Mas tinha uma certa hora da noite que pegava uma cadeira, colocava no quintal e lá ficava horas, olhando o céu. Sabia que aquele momento era só dele. Estava preocupado”, disse Eder.

Em novembro de 2021, João fez 14 sessões de rádio na Santa Casa de Campo Mourão. E mesmo com a tensão do tratamento, jamais deixou ser abatido. Fosse na chegada ou na saída, lá vinha ele contando seus “causos” a outros pacientes. A verdade é que buscava animar quem estava pra baixo, mesmo sabendo lutar contra a própria morte. João era um cara surreal.

Santista doente, tinha uma coleção de camisas do time. Era daqueles torcedores tão fanáticos que comemorava gritando até no replay. Como velho hábito, quando saía, estampava o peito com o brasão do “peixe” e, ainda usava botas e um imenso chapéu. Andava bem devagar pela calçada, quase parando. Não tinha pressa a nada. A não ser, viver. E ele sempre dizia: “Coma e beba tudo o que você desejar. A vida é rápida demais”.

Como humano, por óbvio, João tinha defeitos. E o pior deles, segundo o filho, era não admitir os próprios erros. Jamais os admitiu. E também não aceitava ser julgado. Por nada. Por ninguém. Acabava encerrando o assunto com uma bela gargalhada, saindo de fininho em seguida.

Num dos episódios de suas bebedeiras, deixou o bar com sua velha Elba, anos 90. “Louco” na boleia, acabou subindo a calçada e quase atropelando uma mulher. Ainda atordoado, deixou o veículo e pediu desculpas. Não adiantou. Levou uma surra com o guarda chuvas. Contava a história a quem se propusesse ouvir. E ria.

Mas toda a alegria contagiante de “seo” João, acabou há uma semana, quando foi hospitalizado. Com o tumor em progressão, parou de comer. Fraco, permaneceu inconsciente. Perdeu a memória e, com ela, todo o propósito de uma vida. João não era mais João. O silêncio das máquinas hospitalares foi decretado as 9 horas da manhã da última quarta-feira (09). Naquele momento, ele não contaria mais nenhum “causo”. A guerra contra a morte havia terminado. Assim como a sua dor, fortemente evidenciada nos últimos dias de vida. Mas há um consolo: é que o seu sorriso, sua felicidade, suas gargalhadas, permanecerão. Mesmo que em silêncio, na memória da família.

João com seu jeito inesquecível ao lado do filho, Eder