Mãe que teve filho morto por PM, descobre somente após quatro anos que autor foi inocentado
Jasmelina Rosa da Silva perdeu o filho Paulo e, consequentemente, parte de sua alegria, ainda em 2016. Naquele 7 de março, ele e um amigo decidiram gastar parte do salário em uma boate de mulheres. Com os bolsos cheios, desejavam apenas extravasar. E, após horas de descontração, a alegria saiu de cena. E deu lugar à tragédia. Paulo acabou morto com três disparos de arma de fogo. O gatilho pertencia a um policial militar. Naquele dia, o PM estava de folga. E teria ido à mesma boate também para se divertir. “Paulinho”, como era conhecido, foi acusado de sacar uma arma e dar voz de assalto. A família jamais aceitou a versão, a considerando como uma piada de mau gosto.
Passados quase nove anos da morte do filho, Jasmelina acreditava que o julgamento ainda não havia acontecido. E, durante todo esse tempo de espera, mesmo sabendo que não o teria de volta, desejava que o autor dos disparos pagasse pelo crime. Mas, ao seu espanto, o autor não só foi julgado em 2021, como foi inocentado. Ela tomou conhecimento da sentença somente esta semana. E a bem da verdade, já imaginava o desfecho do caso. “Já imaginava que o policial seria inocentado. Mas acredito que eu deveria ter sido informada da decisão”, disse.
O crime foi denunciado pelo Ministério Público ainda em 2016. E corria através da Primeira Vara Criminal de Campo Mourão. No entanto, no trâmite do processo, acabou sendo transferido à uma vara da Promotoria de Auditoria Militar. E lá, em março de 2021, foi julgado. O policial acabou sendo inocentado. Jasmelina afirma que nunca foi informada sobre a sentença. E após ser apanhada de surpresa, revelou que, no início da ação, quando foi depor, acreditou ser informada sobre todos os trâmites, finalizando com a sentença. Mas não foi isso o que aconteceu. Jasmelina, o irmão dela, e os irmãos de Paulo, afirmam jamais terem sido informados do julgamento.
O Ministério Público informou que, apesar do processo ter sido ajuizado por ele mesmo, o trâmite das intimações do conteúdo da sentença é de responsabilidade do próprio Poder Judiciário. E não do MP. “Mas é possível observar que as partes habilitadas nos autos foram devidamente intimadas, conforme determina a lei. Então não teve nenhuma irregularidade quanto a isso”, informou o órgão.
A reportagem também entrou em contato com o judiciário. De acordo com a Major Claudete, Chefe da Secretaria Criminal da Vara da Auditoria Militar, após a absolvição do PM, a família realmente não foi comunicada. “A comunicação para a família não está na sentença. Eles não tinham um advogado constituído que pudesse ser comunicado”, disse. Ela também confirmou não ter conhecimento de outro caso semelhante, quando a família não foi avisada. Para a Major, a família pode contratar um advogado e pedir uma revisão do caso, se assim entender necessário. “No caso de uma revisão, temos que analisar alguns critérios antes”, explicou.
O caso
Paulo foi morto numa terça-feira, véspera do Dia Internacional da Mulher. Data bastante sugestiva a quem dedicou a vida pelos prazeres da carne. Boêmio, usou seu pouco tempo de vida à elas. Tinha três ex-esposas e uma namorada. Mas, naquela noite deixou todas, simplesmente, para estar em meio a “outras”. Era um apaixonado pelo sexo oposto. Na gíria popular, um “biscateiro”. E esse, foi o preço a pagar.
No último dia de vida, Paulo recebeu a grana do mês e foi à farra. Após o trampo, saiu com a roupa da empresa em sua moto. Nem mesmo o crachá lembrou de tirar. No caminho pegou um amigo. Então, adentraram à boate. Os dois queriam apenas se divertir.
Horas depois, já embalado pelo álcool, Paulo se dirigiu até um espaço destinado a fumantes. Lá, teria tirado um revólver da cintura e mostrado a dois outros homens, amigos do policial. Devido a música alta, eles não souberam precisar se Paulo queria a vender, apenas mostrá-la ou dar voz de assalto.
O policial que o matou disse na época que, ao ver Paulo com a arma em punho, diante dos seus dois amigos, deu voz de abordagem, se identificando. Segundo ele, Paulo teria apontado o revólver em sua direção, que reagiu e disparou. “Paulinho” morreu na hora. E nem mesmo o sangue escorrido foi capaz de esconder seu nome no crachá. “Paulo não era santo. Mas também nunca foi bandido”, revelou o irmão.
Testemunha
Em seu depoimento à Polícia Civil, o amigo que estava com Paulo disse que, naquela noite, os dois chegaram de moto à boate. Lá, beberam, dançaram e se divertiram. Já na madrugada, “Paulinho” sugeriu ao amigo que fossem embora. A testemunha disse que tinha colocado créditos na máquina de música. Queria ver quantas ainda iriam tocar. E foi neste momento em que deixou Paulo sozinho. Quando estava em frente ao aparelho de som, olhou e viu o PM já com a arma em punho, indo em direção ao amigo. “Não deu tempo pra nada. Nem de respirar. Ele efetuou os disparos à queima roupa. E estava a um metro dele”, revelou.
Segundo ele, em nenhum momento os dois tentaram roubar o bar. “Não existiu isso. Ninguém deu voz de assalto”, disse. “Paulinho pagou a conta com seu cartão de crédito. Se quisesse assaltar iria deixar seu nome lá?” questionou. Para ele, pelo menos naquele momento, não haveria motivo algum para que o PM tirasse a vida do amigo. Disse também não saber se existia alguma rixa antiga entre os dois.
A testemunha informou que Paulo estava em posse de um revólver. Não sabe o porquê, mas estava. “Ele me mostrou a arma. Coisa de bêbado. Estava sem munição e nem funcionava”, disse. O rapaz tinha “Paulinho” como amigo e saía com ele porque sabia de sua índole. “Jamais foi bandido”. Logo após os disparos, vendo Paulinho caído dentro da boate, ele ainda permaneceu por longos dois minutos. Estava em choque. “Fiquei com medo de morrer também, porque tinham me visto junto”, falou. Até hoje, ele não sabe porque “Paulinho” foi morto.
Sentença
Na sentença, o juiz entendeu que o acusado pela morte de Paulo agiu em erro de tipo permissivo invencível. “A conduta a ele imputada deve ser considerada atípica, pois diversamente da legítima defesa real, na qual se afasta a ilicitude da conduta, na legítima defesa putativa escusável o próprio tipo não se perfaz”.
Ou seja, quando o PM viu Paulo com a arma em punho, a mostrando aos seus dois amigos, o mesmo entendeu que se tratava de uma tentativa de assalto. Paulo, quando percebeu que o PM sacou a pistola e veio em sua direção, acabou virando a arma na direção dele. Possivelmente, se Paulo não estivesse portando o revólver, ele estaria vivo.
Jasmelina
Mãe de “Paulinho”, Jasmelina Rosa da Silva, jamais acreditou na história do PM. Segundo ela, o filho jamais foi um criminoso. Sempre trabalhou. E não tinha porque assaltar. Chegando inclusive com o crachá, com o próprio nome estampado no peito. “Se fosse assaltar iria com o capacete para esconder o rosto. E jamais com o crachá”, disse ela. A sua identificação continua com ela. Está suja de sangue, mas ainda com o nome aparente. Uma espécie de lembrança. Um presente amaldiçoado.
Jasmelina é uma mulher forte. Trabalhou a vida toda para o sustento da casa. Foi bóia-fria. Trabalhou sob geadas e sol a 40 graus. Peitou companheiros que a agrediam. E hoje é cozinheira renomada. Daquelas de mão cheia. Mesmo guerreira, o coração não é tão grande para armazenar tanta amargura. Já se vão nove anos do crime. Quatro da sentença. E apenas um dia a ser informada sobre o resultado. O PM foi inocentado. E continua atuando pela corporação.
E mesmo com muitas cicatrizes, algumas ainda semiabertas, a mãe tem autocrítica. Ela é consciente que o filho errou ao estar armado. “Ele estava com algo errado, no lugar errado, na hora errada. Mesmo assim ainda me pergunto se o policial não poderia ter agido de outra forma”, questionou ela.
Paulo
Paulo Henrique Duarte foi morto aos 25 anos de idade. Era apaixonado pelos filhos. E, acima de tudo, pelas mulheres. O chamado mulherengo. Trabalhador, era registrado em uma empresa da cidade. Nas horas de folga, ainda fazia bicos como garçom. Nunca foi rico. Ao contrário. Batalhava pra mesa nunca ficar vazia. Ainda mais com quatro filhos a sustentar – com três mulheres. Adorava uma roda de bar. E era lá, onde cantava e tocava seu violão. A bem da verdade, era uma mistura de artista circense e músico. No pouco tempo de vida, deixou um vasto curriculum de amigos. E, não é exagero dizer que, parte deles também morreu com “Paulinho”.
Paulo conviveu com o pai até os três anos de idade. O homem foi colocado pra fora de casa pela mãe. É que ele mantinha um histórico de alcoolismo e violência. Por muitas vezes a genitora apanhou calada. Mas um dia criou coragem e peitou o sujeito. Desde então, passou a ser mãe e pai de “Paulinho”. Com o tempo, o menino tentou se aproximar do pai, embora sem sucesso. Anos atrás veio a notícia de que o homem teria morrido.
“Paulinho” contagiava o ambiente. Era bastante arteiro e contador de causos. Fazia imitações. Dançava. Cantava. Tocava violão, gaita e sanfona como poucos. Mas tem coisas que somente o destino entende. Ele decidiu pela boemia. Era um apaixonado pela noite. Pelo álcool. Por mulheres. E possivelmente, este foi o seu erro. Naquela noite, poderia ter ficado em casa. Mas acontece que a madrugada o atraía.
Para quem o conheceu, Paulinho morreu de graça. “Ele jamais faria isso. Quando estava sem dinheiro para sair, pedia emprestado. Nunca roubou”, disse um colega que não quis ser identificado. Para outro, Paulo se virava com grana. Quando estava sem, fazia bicos e conseguia. “Sempre trabalhando. Fosse o que fosse o bico”, disse.
A mesma pessoa lembrou que “Paulinho” gostava de trabalhar como garçom. Na cidade ele mantinha os bicos quase sempre num mesmo buffet, onde a mãe trabalhava. Mas teve um final de semana que foi atípico. Naquele sábado o buffet não tinha mais vaga para garçom. Ofereceram uma vaga para recreador da festa. Mais precisamente, fantasiado de mulher.
Sim, ele teria que se vestir como uma “dama” e ficar mexendo com os convidados. Era uma brincadeira promovida pelo aniversariante. E Paulo topou na hora. Pegou acessórios da mãe. Calça da namorada. Usou batom, sombra e, acredite: até calcinha. Levou a sério a brincadeira.

Na verdade, “Paulinho” era um debochado. Ele não estava nem aí pra nada. Queria apenas receber o seu, honestamente. Naquela noite levou tão a sério o papel que, enquanto os garçons receberam R$ 100, ele faturou R$ 800. A festa acabou. E o que os convidados lembravam não era do aniversariante. Mas sim daquele “travesti”. “Era tão trabalhador que, mesmo registrado, usava o sábado para fazer extras como garçom”, disse a mãe.
“Paulinho” veio de uma família pobre. Sempre morou na periferia, estudando em escolas públicas. Embora jamais faltasse comida em sua mesa, não podia ter as coisas que um menino almejava. Ele cresceu com isso. E nunca, segundo a mãe, ousou roubar o que não podia ter. Ela lembra de uma única vez, ainda menino, que foi a um mercadinho do bairro com o irmão mais novo. Foram comprar algumas coisas para ela. Ambos queriam comer chocolate. Mas a grana era contada.
Foi então que apanharam algumas caixinhas de caldo Knorr, achando ser o chocolate. Esconderam no bolso. Mas deu tudo errado. O dono do estabelecimento viu e os flagrou. O homem sabia da honestidade da mãe e a chamou. Naquele momento ela deu uma surra nos pirralhos. E ainda, fez questão de comprar os falsos chocolates. Levou o caldo Knorr e, em casa, colocou sobre um prato: “Agora podem comer o chocolate. Se não comerem, vão levar outra surra”, disse. De acordo com ela, nunca mais os filhos pensaram em furtar. “Foi uma lição que serviu pra toda a vida”, lembra.
Paulo sempre acreditou em Deus. Carregava suas medalhinhas santas e, quando podia, ia à igreja. Com dom para a música passou a ser o violeiro dos cultos. Segundo a mãe, era um prazer que ele mantinha. Ela enfatiza que o filho nunca foi um criminoso. A única vez que passou pela polícia foi no trânsito. Em Maringá, onde morou por um tempo, dirigiu alcoolizado. Foi parado numa blitz e encaminhado à delegacia.

Bastidores da notícia
A TRIBUNA vinha acompanhando o caso desde 2016. Em março, quando completaria 9 anos da morte de Paulo, o jornal iria fazer uma matéria. No entanto, querendo antecipar as atualizações do processo, entramos em contato com a mãe da vítima, Jasmelina. Na conversa, ela revelou que o julgamento ainda não teria acontecido, principalmente, por não ter sido comunicada de nada.
Também ligamos ao advogado do PM, Edmundo Santana. Ao nosso espanto, informou que o caso estava encerrado, inclusive, transitado em julgado. “Meu cliente foi absolvido das acusações. E a sentença saiu em 2021”, informou.
Na ausência de uma comunicação da justiça aos familiares de Paulo, coube a este repórter, mesmo que quatro anos depois da sentença, dar a notícia à família.