O talento escondido de Carlos Enrique

Desde os oito anos, Carlos Enrique já havia escolhido o próprio destino. Através dos pincéis, desejava ser um artista. O talento alçou objetivos, como ser reconhecido. Mas, na Ilha dos irmãos Castro, a coisa não se desenrolou. Havia dom e vontade. Mas faltava liberdade e oportunidades. Acuado a uma prisão sem grades, o jeito foi deixar Cuba. E, com a ajuda do irmão médico, que já morava em Campo Mourão, vir ao Brasil era uma das saídas de emergência.

Carlos Enrique Alvarez Delgado chegou ainda em 2019. Na época, aos 42 anos, a meta era colocar os planos de estrutur ar a carreira. Em contato com a prefeitura, conseguiu autorização em expor sua obra. Estava tudo certo. Até a pandemia chegar. Não teve exposição. Sobrou angústia e uma frustração que o acompanha até hoje. Sem ser conhecido, não consegue mostrar e, muito menos, viver como artista. E ele é bom no que faz. 

Especialista em pintura a óleo, tinta acrílica e grafismo, Carlos Enrique impressiona com o seu realismo. As telas se assemelham a fotografias. Desavisados e leigos, não saberão diferenciá-las. Conta que ainda menino, foi influenciado pelo tio, escritor. Voltado à cultura, começou a levar o sobrinho a museus, galerias e exposições. Também mantinha uma vasta coleção de livros em casa. Carlos Enrique cresceu sobre eles. Desde então, passou a saber qual rumo tomar. A escolha foi fácil. A realidade, difícil.

Nascido em San Luis, na província de Pinar del Rio, ele cursou por três anos a Escola de Artes Raul Sanches. Mais adiante, percorreu 200 quilômetros até chegar a Havana, a capital de Cuba. Foi lá onde entrou na Escola Nacional de Artes Plásticas. Com os traços marcantes, iniciou parcerias em galerias. Chegou a fazer três exposições na capital. Suas obras também romperam barreiras, chegando aos Estados Unidos, em 2009, através da exposição coletiva “O Êxodo da Sanidade”. “As obras foram. Eu não. Problemas políticos entre os dois países não permitiam que eu fosse”, disse. E este, era apenas parte dos dilemas que o fariam, mais tarde, a desaparecer da Ilha.

Com um regime socialista, a vida em Cuba nunca foi fácil. Em 2019, ano em Carlos Enrique deixou o país, a Ilha comemorou 60 anos da revolução liderada por Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Ernesto Che Guevara. Naquele momento, uma nova carta magna passou a admitir a convivência do socialismo com a iniciativa privada. Mesmo com o modelo de negócio ainda estar no colo do Estado, por meio das sociedades de economia mista. Em suma: Cuba continuou no caráter socialista. Mas inseriu particularidades do capitalismo. “Ficou pior. Não tem como isso dar certo. Ou faz um ou faz o outro”, disse o artista. Cansado em dar murros em ponto de faca, decidiu vir ao Brasil. Para ele, a única esperança para muitas pessoas em Cuba é emigrar. Outras, que decidem se opor ao governo, acabam presas.     

Antes da decisão, Carlos Enrique era casado. Teve dois filhos. Entre 2012 e 2019, ganhava a vida vendendo sua arte numa feira de artesãos e artistas em Havana. Próximo ao porto, conseguia fazer grana com a venda a turistas que ali passavam. Mas tudo, sempre foi muito difícil. Era uma espécie de “liberdade vigiada”. Mais tarde, acabou se divorciando. Os filhos continuam na ilha, com a ex esposa. Já são três anos sem vê-los. Uma saudade que nem as telas conseguem expressar. 

Brasil

A vinda ao Brasil foi também, uma espécie de libertação. Mas ela só foi possível pela ajuda de Alexei, o irmão médico. Em 2004, ele veio ao país com a leva de profissionais do programa Mais Médicos. Nunca mais voltou. Legalmente radicado na terra brasilis, juntou grana e trouxe o irmão. “Sempre quis ajudá-lo. Ele possui um talento indescritível”, disse o médico. 

Então, morando em Campo Mourão, Alexei comprou as passagens e acolheu o irmão. O que não sabiam é que uma pandemia deixaria o mundo de cabeça para baixo. E foi aí que os planos para desenrolar a carreira, foram paralisados. Até agora. “Se não fosse meu irmão, eu não conseguiria me manter. Ele está me ajudando ainda”, disse Carlos Enrique. 

O pintor mora com Yohana, a companheira de 29 anos, também cubana. Ela deixou o país em 2020 e, após chegar a Guiana Francesa, iniciou uma jornada de quase oito dias até Campo Mourão. “Quando você é cubano, não consegue sair do país. Apenas, com algumas exceções. No meu caso, permitiram que viajasse até a Guiana. Nunca mais voltei”, disse. 

A moça, que já trabalhou em cafés, restaurantes e até mesmo ao governo cubano, está feliz no Brasil. E precisando de um emprego. Segundo Yohana, o Brasil fez o que dezenas de outros países não fazem: dar dignidade a refugiados como ela e o companheiro. “Nós recebemos auxílio emergencial. Temos o SUS. Temos liberdade. Direitos como todos os brasileiros. Sou muito grata a este país”, revelou. Ela também cursa, gratuitamente, um curso de português numa das escolas da cidade, a quem chama a professora, Sandra, como uma “mulher de valores”.

Juntos, Carlos e Yohana, pretendem ter a tão sonhada independência financeira. De um modo específico, deixar as asas caridosas do irmão, Alexei. Mas para isso, precisam tornar a obra de Carlos Enrique, conhecida. Ou seja, sair da escuridão. Empilhados num dos cômodos da pequena casa, os quadros estão ali, guardados há três anos. Um verdadeiro desperdício a um talento indescritível. Uma lamentação, a um mundo cada dia mais carente de cultura.           

Serviço

Além de vender sua obra, Carlos Enrique também aceita encomendas e pedidos. Uma de suas características é desenhar e pintar figuras humanas. (44) 92000-0015.