Período de pandemia aumenta denúncias de abusos infantis

A violência sexual infantil não está longe. Pode estar na casa de um amigo. De seu vizinho. Ou, no seu próprio lar. O inimigo não é invisível. Não é desconhecido. Ele se esconde nas próprias sombras. Muitas vezes, é o pai. Um tio. Se aproveitam de vítimas inocentes, e roubam suas infâncias. Vidas roubadas. E os predadores estão por toda a parte. Em todo o país. Em Campo Mourão, de março, até agora, já são 22 denúncias no Conselho Tutelar. Números preocupantes à entidade. São casos ocasionados por toques. Beijos. Estupros. Aqui, definitivamente, não existem pontos de vista diferentes. Mas a única regra, não abusar, continua sendo quebrada. E você pode ajudar denunciando. 

Presidente do Conselho Tutelar de Campo Mourão, Valdirene Neves, diz que os índices são altos demais. Além de 22 casos desde março, o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), acompanha outras 52 famílias, de casos anteriores. E os números aumentaram durante a pandemia. São denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Mais especificamente, abuso sexual, exploração sexual e estupro de vulnerável. De uma certa forma, o “fique em casa”, acordou os predadores.  

A coisa funciona assim: primeiro a família se dirige ao Conselho Tutelar, onde narra o fato. Depois disso, o responsável pela criança, é instruído a fazer um Boletim de Ocorrência na delegacia de Polícia Civil. O famoso “BO”. Lá, após lavrar a denúncia, é sugerido levar a vítima ao Instituto Médico Legal (IML). Local a ser realizado um exame de corpo delito. “Nenhuma criança ou adolescente é obrigado a fazer o exame. A lei não obriga, principalmente, por entender que passariam por um segundo constrangimento. Uma espécie de nova violência”, explica Valdirene. Segundo ela, o laudo ajuda na elucidação dos fatos. Mas não é o único meio de conseguir provas materiais à denúncia. 

O Conselho Tutelar não culpa. Não acusa. O órgão apenas recebe a denúncia e acompanha algumas situações. As informações das famílias também podem não ser verdadeiras. Por esta razão há muito sigilo e discrição. Primeiro, para proteger as crianças. Depois, para não culpar  antes da hora. Após fazer os trâmites legais, o caso passa às mãos da polícia e, consequentemente, do Ministério Público. Abaladas psicologicamente com os fatos, as famílias – e a vítima – passam a ser assistidas pelo CREAS. Um órgão público com serviços, programas e projetos destinado a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social. 

O CREAS tem como objetivo principal contribuir à prevenção de agravamentos que envolvam risco pessoal e social, violência, fragilização e rompimento de vínculos familiares, comunitários e sociais. Nesse caso, também no que se refere a violência sexual. Famílias com crianças e adolescentes em situação de suspeita ou confirmado a situação de abuso é oferecida ajuda. Como a assistência psico social. “Após ciência da violação de direito da criança e do adolescente são realizadas, em primeiro momento, visitas domiciliares e acompanhamento psicossociais à família”, ressalta Andréia Rejane Vinch, pedagoga e coordenadora do CREAS.

Valdirene explica que, mesmo pedindo que as famílias registrem o “BO”, algumas não o fazem. Então o Conselho entra em ação. E leva a denúncia adiante. Após o início das investigações da polícia, quando o suposto abusador está na casa, ele deve sair. Se isso não acontece, o Conselho tem o poder em retirar a vítima e levá-la à casa de um outro familiar. Se ainda assim isso não for possível, a criança é encaminhada a outros órgãos indicados pela justiça. “Não acusamos ninguém. Mas aplicamos medidas de proteção às vítimas”, lembrou.

Visão policial

Quase 20 anos como escrivã da Polícia Civil,  Ângela Colombo Cruz, diz que a maioria dos casos de violência sexual a crianças e adolescentes, está ligada à própria família. Ou seja, o grau de parentesco, ou amizade, aproxima o abusador da vítima. “Existe confiança entre o abusador, a vítima e seus familiares”, afirma. Ângela sempre fez atendimentos relacionados à violência doméstica e abusos sexuais. Para ela, esses crimes são de autoria identificada. Uma vez que os abusadores são pessoas conhecidas dos familiares. Um parente. Um vizinho, ou amigo íntimo. 

“Crimes sexuais são mais comuns do que as pessoas imaginam. Os abusadores muitas vezes não percebem que um toque já é um abuso. Para alguns, a prática sequer foi crime, pois acreditam que o abuso seria a conjunção carnal em si e não um ato libidinoso”, explica. Na experiência adquirida ao longo dos anos, ouve sempre as mesmas conversas, embora nunca, uma confissão verdadeira. “As confirmações são aquelas que eles dizem “ela consentiu”, ou aquelas em que confirma ter comprado algum tipo de presente, ou ter feito algum elogio. Lamentavelmente jamais presenciei cenas de arrependimento”, afirmou. De uma forma geral, nunca viu uma só lágrima ser derramada por um abusador. 

Perfil doentio

Para a psicanalista de crianças e adolescentes, Ana Maria Brayner Lencarelli, autora de artigos sobre o tema, o abusador é uma pessoa comum, que mantém preservadas as demais áreas de sua personalidade. Ou seja, é alguém que pode ter uma profissão e, até ser destaque nela. Pode ter uma família e, até ser repressor e moralista. Pode ter bom acervo intelectual. De uma maneira geral, aos olhos sociais e familiares. pode ser considerado uma pessoa normal. “Ele é perverso e engana a todos sobre sua parte doente. Para ele é tão excitante enganar quanto a própria prática do abuso. Pode esconder-se vestindo uma pele de cordeiro. Uma pele de autoritário. Necessita da fantasia de poder sobre a vítima. Usa das sensações despertadas no corpo da criança ou adolescente para sub julgá-la, incentivando a decorrente culpa que surge na vítima”, diz. 

Lencarelli ressalta que o abusador pode ser agressivo. Mas na maioria das vezes usa da violência silenciosa. Da ameaça verbal. Ou apenas, velada. Covarde, tem muito medo. E sempre irá negar o abuso quando descoberto. O pedófilo procura, frequentemente, a situação de exercer a função de substituto paterno para ter a condição de praticar sua perversão. “Seu distúrbio mental é compulsivo. Irá repetir e repetir seu comportamento como o mais forte dos vícios. Nenhuma promessa de mudança de seu comportamento pode ser cumprida. Pois ele é dependente do abuso. Tem consciência do que prática. Por isso deve ser responsabilizado criminalmente, sem atenuantes”, afirma. 

A psicanalista explica que, o maior dano é à mente da criança. Que é invadida por concretização das fantasias sexuais próprias da infância e que deveriam permanecer em seu imaginário. “Esta concretização precoce pode explicar a evolução de abusado para abusador. A criança fica aprisionada nesta prática infantil de sexo. E suas numerosas implicações psicológicas adoecedoras, apenas muda de lado quando se torna adulto, permanecendo assim, na cena sexual infantil traumática”. 

Promotoria de infância

Luciano Matheus Rahal, promotor da Infância e Juventude de Campo Mourão, diz que 95% dos casos envolvem pessoas da própria família, como tios, avôs, pais. Também existem abusadores de fora do círculo familiar. E, ao contrário do que se imagina, estão espalhados por todas as classes sociais. “É na escola onde os professores ajudam a perceber mudanças de comportamento nas crianças. Eles são aliados para combater o problema”, disse. 

Embora não existam “vacinas” contra os predadores, ainda há remédio: a conscientização das crianças. E o trabalho é feito nas escolas e em casa. “A melhor forma de evitar os abusos é conscientizando”, diz. Hoje, a lei prevê prisão de 8 a 15 anos aos chamados pedófilos. No entanto, devido aos atenuantes, a cana quase sempre é menor. Mesmo sendo considerado crime hediondo. “O problema não é necessariamente a pena, mas o tempo da investigação até o julgamento de um caso de abuso. Demora até chegar ao fim. O que pode levar o abusador a ser preso somente anos depois do abuso. Esta morosidade do sistema, passa a sensação de impunidade para a comunidade”, explica o promotor.

Segundo Luciano, faltam investimentos do poder público na polícia investigativa. O que acarreta um quadro de delegados, investigadores e escrivães muito abaixo do necessário. “Assim, o que é urgente (prisões em flagrante), acabam tendo prioridade. E os demais crimes ficam num segundo plano”, diz. Para ele, a polícia civil de Campo Mourão, apesar das dificuldades, vem fazendo o que pode, mas não consegue atender a demanda. A observação não é em vão. De acordo com ele, muitas vezes a única prova é a própria palavra da criança. E se, houvesse mais dinâmica nas investigações, o quadro poderia ser outro.  

As denúncias podem ser realizadas nos seguintes canais:

• Conselho Tutelar: 3518-4426 / 991256727
• Disque 100
• Delegacia civil – 3523-4250