Viviane teve a vida cercada por tragédias

Viviane viveu somente 33 anos. A jornada terminou na última quarta. No pouco tempo de vida, poderia ter escrito um livro sobre tragédias. Suas próprias tragédias. Mas quis o destino, que a história fosse concluída antes. Ao defender um cão vira latas, foi agredida pelo vizinho, Paulo Vítor Pereira. Numa discussão acalorada, ainda no dia 19 de setembro, recebeu uma tijolada na cabeça. Passou mal. Foi internada. Não resistiu. Incansável defensora dos animais, não aceitou ouvir do próprio agressor, que mataria o bicho. Perdeu a batalha.     

Viviane Andréia dos Santos era casada há apenas dois meses. Por opção, nunca teve filhos. Via nos seus 12 animais, cães e gatos, a companhia perfeita. Abandonados, ela os adotou. Um a um. Não aceitava ver os bichanos a mercê do destino. Dos maus tratos. Sua última batalha por um deles, aconteceu exatamente com o vizinho. “Ouvimos ele dizer que mataria o cãozinho. Estava com um pedaço de pau. Quando o animal começou a gritar, tentamos argumentar”, disse a amiga e, irmã de coração, Flávia Bueno. Testemunha ocular do fato.

Naquele dia, Viviane estava na casa de Flávia. Na Travessa Antúrio, número 12. Jardim Paulista. Eram quase 20h. Segundo a amiga, Paulo teria ido próximo ao muro que dividia as casas e falado alto: “Quero ver qual demônio vai impedir eu matar esta praga”. Para Flávia, foi uma provocação. O homem sabia do zelo que Viviane mantinha pelos animais. Em seguida, o cão começou a gritar. A quizumba começou. Pelo muro, as amigas disseram que chamariam a polícia. Irritado, o vizinho as xingou. Jogou objetos. Um deles, inclusive, feriu braço e o rosto de Viviane. 

Vendo a viatura chegar, Paulo correu. E fugiu pelos fundos. Os policiais abriram o portão da residência do acusado. Foi então que o cão saiu à rua. As amigas pegaram o animal e buscaram confortá-lo. Como Paulo não foi encontrado, a guarnição deixou o local. Mas ele retornou. E, depois de observar a ausência do bicho, a confusão começou novamente. Entre palavrões, ameaças e muito desequilíbrio emocional, Paulo atirou um tijolo inteiro contra Viviane. Não se sabe se o desejo era realmente atingi-la. Mas acertou em cheio. Na cabeça. 

Com dores, mas sem sangramento, Viviane adentrou a casa. Deitou. Disse estar com ânsia de vômito e uma grande tontura. “Ela tinha um galo gigantesco na cabeça. Então chamamos o Samu”, lembra Flávia. A equipe médica achou melhor levá-la à Santa Casa. Principalmente, por começar a vomitar. Já internada, Viviane falou com a amiga através do celular. Disse que sua cabeça doía muito. Perguntou do cão, se estava abrigado com ela. Ao mesmo tempo, relatou o desejo em ir embora do hospital. “Disse que me amava. Que amava o marido dela. Depois disso, desligou. Também mandou fotos de lá e uma mensagem ao marido”, afirmou Flávia. 

Na madrugada do dia seguinte, Viviane teve uma série de convulsões. Então foi entubada. Passou a ficar inconsciente. E não voltou mais. Mesmo hospitalizada, a última conversa em vida, naquele 19 de setembro, foi para saber se o animal estava bem. E está. Tirado de Paulo, o bicho foi cuidado. Recebeu carinho. Atenção. E foi adotado por uma família. Continua muito bem. Viviane, que o salvou, também deve estar bem. Mas num outro plano. Seus projetos terrenos, estes sim, terminaram. Sem volta. O óbito identifica as causas como insuficiência respiratória. Epilepsia e obesidade mórbida.

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Polícia

No mesmo dia da agressão, a polícia retornou ao local. E encontrou Paulo. Estava, mais uma vez, escondido. Foi levado à delegacia. E submetido a um termo circunstanciado pelo delegado de plantão. Prestou depoimento e saiu em liberdade. De acordo com o delegado Chefe da 16 Sub Divisão Policial de Campo Mourão, Nilson Rodrigues da Silva, no dia, a equipe sugeriu que Viviane, ao deixar o hospital, também procurasse o departamento para prestar queixa. “O termo foi apenas no caso de Flávia, que compareceu à delegacia. Ninguém poderia saber que o estado de saúde de Viviane se agravaria”, disse o delegado. 

Mesmo assim, um dia depois do acontecido, Nilson instaurou inquérito policial para averiguar os fatos. Dentro do prazo legal, ele agora está juntando provas e depoimentos para materializar o caso. A reportagem tentou localizar Paulo para que comentasse a sua versão. Sem sucesso. Depois do episódio, ele deixou a casa onde morava, no Jardim Paulista.   

Uma vida de tragédias pessoais

Viviane veio ao mundo para ser feliz. E, por muitas vezes, alcançou a felicidade. Era uma moça guerreira. Falante. Convicta por suas decisões. Mas a vida traçava obstáculos. Quase sempre, difíceis demais. Ainda aos dois anos de vida, a mãe, Marli, perdeu sua guarda. Era alcoólatra. Viviane foi entregue a um lar em Campo Mourão, o Dom Bosco. Que não mais existe. Em 2010, ela concedeu entrevista a este repórter. Na época, Viviane falou sobre a mãe e o irmão, Luiz. 

O alcoolismo, segundo Viviane, levou a mãe a fazer programas sexuais. A situação foi ao extremo. Ela acabou por morar nas ruas de Cascavel. Seu paradeiro, até hoje, é incerto. Com o tempo, Marli teve outra filha, Fabiane, que ficou com a avó. E Luiz, o mais novo. O menino ficou com a genitora até os sete anos, em Cascavel. Passou maus bocados vendo as barbaridades da mãe. Sem aceitar ajuda de outros familiares, Marli passava noites e noites na rua. Luiz ia junto. Não tinha onde ficar. Um dia ela também perdeu o menino. A justiça determinou que fosse a um orfanato. Veio então a Campo Mourão. Distante da mãe e das irmãs, Luiz jamais conheceu o pai. Ele estava sozinho.

Por volta de 2010, já fora do abrigo, Viviane conseguiu emprego e a guarda do irmão. Foram morar na rua Porto Alegre, Vila Rio Grande, em Campo Mourão. Uma rua tranquila, sem movimento de carros. Aos fundos, uma mata. Tanto de dia, como de noite, uma calma absurda. Ali, entre os números 401 e 415, existia uma casinha de madeira azul. Desbotada pelo tempo, ela abrigava os dois irmãos. Ela, na época com 24. Ele, com 12. 

O imóvel era pequeno, apenas quatro peças. Mas o suficiente para duas pessoas que se amavam. Juntos, passaram pelos mesmos dramas e tragédias. Mal conheceram o pai e, ao mesmo tempo, viram a mãe perder-se no álcool. Acabaram em orfanatos, cada um, a seu tempo. Com muito esforço, Viviane montou a casinha. Mas na noite do dia 23 de novembro de 2010, a vida aprontou, mais uma vez. Os sonhos da guerreira foram destruídos. 

Um incêndio queimou a casa. Ela e o irmão dormiam e não viram o fogo. Vizinhos adentraram ao imóvel e salvaram a moça. O pequeno Luiz também saiu vivo, mas acabou morrendo diante das queimaduras. Segundo testemunhas, teve 90% do corpo queimado. 

Luiz Fernando dos Santos era um anjo, só não tinha as asas. Talvez por este motivo tenha retornado ao paraíso antes do tempo. Ele morreu como um inocente. Uma vítima da fatalidade. De um provável curto circuito. Um acaso do destino. Dormia quando o fogo o pegou de surpresa. Teve quase todo o corpo queimado. Uma vizinha, desesperada na tentativa em ajudá-lo, viu a camiseta colada ao corpo. A arrancou. Junto veio toda a sua pele. Luiz foi levado à uma casa até a chegada do socorro. Vizinhos colocaram um ventilador para amenizar seu sofrimento. Mas ele não parava de andar. Gritava e chorava. Dizia que precisava de ajuda. Que iria morrer. Não queria ficar sozinho e estava com medo. Horas mais tarde, morreu.

Luiz

O menino sempre teve uma vida difícil. Nasceu de um ventre dependente de álcool e morreu sofrendo de queimaduras. As gentilezas da vida, definitivamente, jamais lhes foram apresentadas. Parece até que o menino nasceu para sofrer. Cresceu vendo a mãe beber. Segundo relatos de Viviane, a mãe, Marli, bebia até três litros de cachaça por dia. As consequências de seus atos foram extremamente desastrosas ao filho. Ainda criança, ele era obrigado a assistir as relações sexuais da própria mãe. Também teria sido abusado sexualmente. Enquanto ficava na rua com Marli, era obrigado a roubar.

Fora do abrigo e já sob as asas da irmã, Luiz passou a ter um sentimento que, até então ouvia dizer que era a tal felicidade. Tinha finalmente um lar. Brincava, sorria e era bastante descontraído. Mesmo tendo uma infância destruída pela doença da mãe, gostava de desenhar e não era tímido. Passou a estudar a tarde no Colégio Estadual. Queria ser veterinário. Adorava animais. Tinha dois cãezinhos na casa. Morreu sem saber da morte dos dois, esfacelados pelo fogo. 

Pelas manhãs frequentava o centro de integração. À noite aguardava a irmã chegar do trabalho. Ela atuava como agente da dengue na prefeitura de Campo Mourão. Mais adiante, Viviane passou a tomar um forte medicamento controlado. Foi encostada do trabalho. Evangélicos, os dois dormiam cedo. Possivelmente, devido ao remédio, Viviane não conseguiu acordar com o incêndio.

Naquele dia, ela e o irmão foram retirados da casa com a ajuda heróica de dois vizinhos. Um deles avistou as chamas no interior da casa. Sabendo que os irmãos dormiam cedo, não pensou duas vezes e arrombou a porta. Retirou os dois, mas não a tempo de evitar as queimaduras de Luiz.

Apesar do drama da mãe, Luiz e Viviane adoravam Marli. Em 2010, ela esteve em Campo Mourão. Ambos tinham o desejo em ajudá-la. Mas ela não parava de beber. Durante os 30 dias em que permaneceu com os dois, diminuiu as doses diárias de álcool. “Eu dava R$ 0,50 todo dia pra que ela comprasse uma dose. Foi um avanço. Achamos que ia melhorar. Mas ela preferiu ir embora”, lembrou Viviane. 

Após o incêndio e a morte do irmão, Viviane recebeu ajuda de uma igreja da cidade. Tornou-se obesa. Muito em decorrência pela perda fraternal. Mas deu a volta por cima. Reconstruiu sua vida. Passou a lutar pela defesa de cães e gatos abandonados. Conheceu Ivo, com que se casou há dois meses. Tudo ia bem. O marido ainda não acredita no que aconteceu. Está em choque. “Eu a amava muito. Quero justiça. Jamais vou esquecê-la”, disse ele.  

Fabiane, irmã mais nova de Viviane conta que as duas eram bem próximas. E também dividiam os dilemas da própria mãe. Por muitas vezes a mais velha tentava ajudar Marli. Mas o vício sempre falou alto. E esse era o problema. A mãe tomava rumos desconhecidos, passando a ficar desaparecida. Sem dar notícias. Em 2019, Marli esteve novamente em Campo Mourão. Ficou na praça. Arrumou uma confusão com outra mulher. Provavelmente, por bebida. Levou duas facadas no pescoço. Foi levada ao hospital e se recuperou. Após três dias internada, fugiu. Escapou dos médicos e ganhou as ruas. Depois disso, voltou à Cascavel. E nunca mais deu notícias.

Viviane não teve tempo para escrever sua história. Foi cedo demais. Segundo a amiga, Flávia, ela passou a dedicar amor aos bichos pensando em tudo o que viveu. “Ela não podia ver os bichos abandonados. Lembrava do abandono a que foi submetida”, disse. E, por defendê-los, arduamente, acabou morrendo. Sua causa, suas convicções, foram também a sua sina. A família e amigos, esperam que, agora, a última página de sua vida, seja escrita e concluída, pela justiça.