O essencial

“O verdadeiro heroísmo consiste em persistir por mais um momento, quando tudo parece perdido”. (W. F. Grenfel)

*Essa é uma história de ficção

O espaço vazio do salão com as mesas empilhadas fica meio embaçado com as lágrimas. Afinal, são 32 anos cuidando do “buteco”. Dona Ivone, 68 anos, volta para casa e relembra as histórias que construiu junto com o marido, desde quando resolveram que poderiam sonhar com um futuro melhor empreendendo, já que Seu Jorge não podia mais trabalhar por problemas de saúde. O buteco teve várias versões: já foi mais mercearia, mais lanchonete e até uma pizzaria meio improvisada. Nos últimos anos fixou-se mesmo como bar. Variava conforme a idade e os palpites dos meninos, principalmente depois da morte do pai. Mas sempre deu pro gasto. Sempre deu, mas agora não. Há mais de sessenta dias fechado por conta do Coronavírus, sua atividade foi considerada não essencial. Para dona Ivone e seus dois “meninos”, o bar é essencial sim. 

Rogério, o filho mais novo de Dona Ivone, foi trabalhar de entregador. “Delivery tá crescendo”, argumentou. Deu um tapa na motoca, cadastrou-se num aplicativo e começou a fazer entregas. O irmão ficou no Bar enquanto a mãe se recupera. 

Rafael está em casa de quarentena. Jovem, saudável, não aguentou a solidão. Grupo no whatss, vamos fazer um churras. “Pai, não esquenta. Vou chamar só os mais chegados”. Data e hora marcada, chega a galera. Não ia faltar narguile, né? Barril de chope, na beira da piscina, é obrigatório. 

O som estava alto quando chegou no endereço. Quase não se podia ouvir o interfone. Enfim, apareceu um jovem casal para receber o pedido. Rafael era o nome no ticket, lembrou fácil do xará de seu irmão. Assinada a entrega, fechado o portão, Rogério segue pra próxima. 

Dentro do capacete, vai costurando no trânsito e se perguntando se haveria uma lógica de Deus nessa pandemia toda. Percebia entre uma entrega e outra a discrepância de valores e pensamentos entre as pessoas. 

Enquanto algumas autoridades queriam que o comércio fechasse, preocupadas com a contaminação, e não notavam que as pessoas estavam se encontrando nas próprias casas, os negócios como o da sua família estavam se definhando. Percebia que pessoas egoístas, que  não ligavam para o que poderia acontecer com o próximo, eram as primeiras que criticavam qualquer medida de contenção. Acompanhou com sua moto muita gente nas ruas, sem máscaras, fez muitas entregas de bebidas em festas particulares. E refletia: porque não posso abrir o bar? 

Quando voltava pra casa, tentava ficar um pouco com a mãe convalescente. Distraia-a contando sobre seu dia e suas viagens pela cidade. Não fazia ideia de como ela pegou coronavirus. 

Carlos Alberto Facco – Secretário de Desenvolvimento Econômico de Campo Mourão | [email protected]