Os armários da antiga casa

Era uma casa que à primeira vista não causava boa impressão. Muros deformados, cheios de pedaços de rebocos soltos, mofados e de cores indefinidas. Dependendo de onde se olhava, percebia-se nuances diferentes de formato e cor.  Como muitas pessoas estranhas tentavam pular o muro, as extremidades das lanças pontiagudas que ficavam por cima do muro estavam sempre amassadas e tortas. Aquelas lanças tinham a função de inibir qualquer desejo de aproximação da casa de forma desautorizada. A passagem convencional deveria ser pelo portão, – somente quando estivesse aberto! No quintal da casa cresciam, pujantemente, o capim, o espinho, a erva daninha, o cipó e tantas outras espécies que pareciam querer impedir o trânsito livre de idas e vindas.  Se alguém se aproximasse, logo na entrada, ouviria o ranger das dobradiças que, em tom grave e crescente, anunciava o movimento da porta. Toda vez que aquela porta se abria ou se fechava, sons fantasmagóricos assustadores da maçaneta e dobradiças antecipavam qualquer imagem.  Aqueles sons se apresentavam como gemidos de uma porta que se recusava se movimentar, abrir e fechar.  Pareciam gemidos de dor de uma porta que se propõe paralisar, ficar quieta, inalterada, sem abrir e sem fechar.  Maçaneta, dobradiças, grades, desenhos em alto relevo…  Tudo descamava. Verniz e tinta, responsáveis por renovar as superfícies onde se encontram, desprendiam-se da porta que gemia cada vez que se movimentava. Aquela porta descamava como se estivesse expulsando a tinta e o verniz que um dia já lhe fez nova, realçou sua beleza e carregou de brilho e luz seus desenhos e formas.

Dentro da casa exalava um aroma denso, carregado, como se algo fermentasse. As paredes assumiram tons cinzentos por conta da quantidade de poeira que se assentava em cada relevo e adornava com formatos indefinidos.   Corredores, que mais pareciam labirintos, conduziam até um quarto sombrio e úmido, com imensos armários de portas trancafiadas com fechaduras, cadeados e correntes. Era nesses armários que se guardava todo o conhecimento da casa. Ali estavam informações adquiridas com o tempo, formação e desenvolvimento de grande valor. Ali também se guardava fotografias tortas nas quais apareciam pessoas com semblante taciturno e uma inconfundível ausência de verve. 

De repente, num daqueles momentos encantados da existência em que as coisas se transformam como num passe de mágica, sem submeter-se às categorias da lógica e da razão, uma porção de poeira mágica cai do céu, abrindo as nuvens  por sobre a casa, e começa uma transformação. Essa poeira encantada, veloz e sinuosamente, contorna todos os empecilhos da entrada da casa, dribla portas, paredes e corredores e chega aos grandes armários da casa.  Nesses armários se guardava todo o conhecimento da casa. De súbito, cadeados e correntes despencam. Com a fechadura aberta, o conhecimento que ora era trancafiado e mantido refém das próprias convicções, agora exala uma nova oxigenação transformando tudo à sua volta.  Fotografias com semblante taciturno em quadros tortos dão lugar a rostos vibrantes e definidos, cada qual no seu lugar da memória.   Aquela parede passa a ser a parede mais rica da casa porque preservava a lembrança das pessoas que fizeram parte da sua história. Com a transformação dos armários, toda a casa começou a mudar.  Apareceram as paredes com cores vibrantes originais que, aliás, sempre estiveram ali, nas paredes e nas portas, mas foram escamoteadas pelo acinzentar e escamar do tempo. Silenciaram os gemidos das dobradiças no abrir e fechar das portas porque não havia mais ferrugem acumulada que se manifestasse a cada mudança de estado da porta de abeto para fechado ou de fechado para aberto. Derretem-se as lanças dos muros e, em seguida, os muros caem, deitando-se, ficam em posição horizontal, transformando-se numa imensa passarela de idas e vindas contornando toda a casa. O que era parede virou ponte.

Ao se olhar para aquela casa, via-se uma imagem cativante para as experiências ainda não vividas dentro e fora dela. O brilho das tintas, que um dia a tingiram com nuances de expectativas e vibração, retornou com maior intensidade ainda.  Percebia-se de longe.  Não havia dúvidas de que era uma casa diferente já que não havia casa nenhuma igual naquela rua e nem em qualquer outra rua.  Aquele momento tão especial demonstrou que, diferente do que apresentou a primeira impressão, aquela era uma bela e aconchegante casa! Demonstrou também que nesse lugarejo de pequeninas dimensões chamado vida, as casas não são identificadas por números, como vemos habitualmente.  As casas são identificadas por nome.  Havia a casa chamada João, outra casa chamada Antônio, ainda outra com nome de Claudia, Maria, Érica… até chegar o nosso nome.  Belas casas com grandes armários. Todos sem trancas e sem correntes.