Na Bélgica, Gilce, paratleta de Iretama, vai em busca de desafio maior que ganhar medalha

Imagine você em uma bicicleta, andando por uma pista ou descendo estradas sinuosas a velocidade acima até dos 45 quilômetros por hora. Agora junte isso tudo com você tendo apenas 5% da visão, podendo ouvir apenas alguns ruídos com auxílio de próteses auditivas. Parece impossível. E pode até ser, inclusive para muitos até mesmo sem tais ‘limitações’. Mas não à paratleta de Iretama, Gilce Cristina Duarte de Oliveira Côrtes.

Hoje Gilce está a milhares de quilômetros de sua ‘terrinha’ e da sua família representando Iretama, a região, o Paraná e o Brasil na 1ª etapa da Copa do Mundo de paraciclismo em Oostende, na Bélgica. Ela disputa a modalidade Paraciclismo Classe B Tandem (bicicleta dupla para cegos).

A competição reúne mais de 450 atletas de diversas classes. Prossegue até este domingo (8). Gilce está acompanhada da sua piloto, Talita Luz. A dupla participou da prova de contrarrelógio, na sexta-feira (6). Neste domingo o desafio será de resistência. A dupla percorrerá 91,8 quilômetros de um circuito planejado nas ruas de Oostende.

Gilce vai em busca de desafio maior que ganhar medalha. Vai também em busca de superação. Em postagem em sua página do facebook, já em Oostende, ela falou da alegria que é participar da Copa. “Estou muito feliz de fazer parte do time do Brasil e poder representar nosso país e, de certa forma, individualmente cada um de vocês que torcem e me acompanham. Só tenho a agradecer a todos que me ajudaram a chegar até aqui, família, amigos, apoiadores e, acima de tudo, Deus”, falou a paratleta. “Contamos com as vibrações positivas de todos vocês”, acrescentou

A paratleta, iretamense de coração, é nascida em Peabiru, faz questão de contar o pai Gezulino Duarte de Oliveira, 70. Ela é filha da professora Neusa. E tem um irmão gêmeo. O Gilson. Eles estão ansiosos e orgulhosos de Gilce. Afinal ela nunca reclamou da sorte. Escolheu ser mais forte na adversidade. “Para nós é muita honra. É gratificante”, falou ele que já foi vereador e servidor público em Iretama. Hoje é aposentado. Curte a família com mais tempo.

Síndrome de Usher

Gilce é portadora da Síndrome de Usher, que associa perda de visão e audição. É uma doença degenerativa e genética. Ela vai perdendo, a cada dia, um pouco da visão e da audição. Só vai parar quando infelizmente, a paratleta estiver totalmente surda e cega. Pela medicina atual, essa síndrome é incurável. Dos médicos apenas duas únicas recomendações à Gilce: evitar sol nos olhos e não passar por situações de estresse.

Formada em Artes Visuais, Gilce foi obrigada a se afastar dos ateliês e das salas de aula onde era professora, pois não conseguia mais diferenciar cores ou enxergar palavras. Antes, fazia gravuras, xilogravuras e esculturas diversas. Sua paixão sempre foi arte contemporânea, moderna e clássica. A falta de visão e audição, deixou seu tato afiado com o tempo. Hoje, aliás, é seu maior aliado. Ela é alfabetizada em Braille, o sistema de escrita para cegos ou pessoas com baixa visão.

“A minha filha era artística plástica com trabalho renomado exposto até na Espanha. O caso dela [a doença] foi o primeiro na região. Veio perdendo a vista gradativamente, já a partir dos 16 anos. Foi um baque para a família”, relatou Gezulino, em entrevista à TRIBUNA. Além disso, Gilce sofre de fibromialgia, uma síndrome clínica que se manifesta com dor no corpo todo, principalmente na musculatura.

Segundo o pai, a filha já tinha perdido movimentos de grande parte do corpo. Em meados de 2003 uma profunda depressão tomou conta de Gilce. Ela chegou ao fundo do poço. Mas não desistiu. Se levantou e continua dia após dia enfrentando as estradas desafiadoras da vida nas quais estabelece metas e renova o seu sentido de existir. “Ela é nossa heroína e serve de inspiração para toda a família”, afirmou Gezulino.

Reviravolta

O pai lembra que a reviravolta de Gilce teve início em uma academia. Ela foi a um centro de treinamento e começou fazer exercícios por orientação médica. Sua personal trainer percebeu que tinha bastante resistência. Então a inscreveu na Prova Tiradentes de Maringá em 2019.

Pela primeira vez não foi bem, lembrou ele. Mas sua personal não perdeu a fé e a inscreveu em uma prova da Copa Brasil de Paraciclismo Tandem logo na sequência. Resultado: ela conquistou medalhas de bronze e prata. “Aí não parou mais”, relatou com orgulho Gezulino.

Hoje sua filha é atual campeã brasileira, sendo a primeira no ranking nacional e vice campeã do Panamericano. “Ela realmente encontrou no esporte a força e superação. Hoje é uma vencedora”, comera o pai.

Inspiração

Com a entrada no esporte, Gilce criou uma página no Facebook e passou a receber o contato de pessoas que sofrem do mesmo problema. Cada vez mais, serve de inspiração e transmite seus ensinamentos e sua força de vontade. Além disso, dá palestras em Universidades, escolas e onde é chamada.

“Você passa a ter referência pelas mãos, como se seus olhos estivessem ali, na ponta dos dedos. Quando se perde a visão, aguça-se os outros sentidos. O primeiro plano é a audição. Como a minha também é afetada, apurei o sentir”, disse Gilce em entrevistas a sites de Esportes. Ela relata ainda que o ciclismo chegou por acaso. Que nunca tinha praticado nenhuma modalidade. “A deficiência veio para mostrar que se pode ir muito além”.

Disputas em duplas

A guia vai na frente ditando o ritmo. A ciclista vai atrás, tentando manter o ritmo e dar estabilidade à bicicleta. As bicicletas são bem diferentes em relação às provas de pista e de estrada. No velódromo, a bike não tem freio nem marchas. Ela é bem mais clean e mais leve. Na estrada, o equipamento já é bem mais pesado. Como as provas são mais longas, a bike precisa ser mais resistente.