A breve vida de Brande

José Brande Perdocini morreu aos 48 anos. Viveu intensamente. Viveu ao seu modo. Nasceu em 71, em meio a tempos de ditadura militar. Em Campo Mourão, isso não representava muita coisa. Lá a vida seguia normal. Mas entre a comodidade em ser um simples mortal e a escolha de ser único, optou por ser ele mesmo. Então deu um chute no convencional e escolheu seu próprio caminho. Pagou o preço. Morreu cedo. Mas deixou histórias que os poucos amigos não conseguem apagar. A mesa do bar agora está vazia.

Brande veio de uma família tradicional, cujas raízes saíram das madeireiras. O Centro Oeste paranaense sempre foi um exportador madeireiro. Brasília que o diga. O rapaz estudou e cresceu como uma criança normal. Tinha pai, mãe e dois irmãos mais novos. Brande sempre foi muito ativo e alegre. Ainda na adolescência já se via um garoto que esbanjava felicidade. As rodas sempre se concentravam ao seu redor. Gostava de uma piada. Também era notável sua inteligência e personalidade forte. Tinha opinião formada pra tudo. Nunca foi influenciável. Por nada. Por ninguém.

Brande viveu em busca de algo que jamais encontrou. Nunca fez planos. Ainda em 88 rumou à Curitiba. Fez “terceirão” e, em 89, passou no vestibular. Foi o primeiro dos amigos a passar na Federal do Paraná. Tão inteligente que saiu do boteco bêbado e foi pra prova. Passou em Engenharia Civil. Brande não buscava amizades. Simplesmente as atraía. Ele contagiava as pessoas.

Em Curitiba, morando longe dos pais, traçou seu único plano de vida, até então: concluir a faculdade. E assim o fez. Nas horas de folga adotou um bar da capital chamado La Paula. Era ali onde estacionava sua Parati preta. Abria o porta malas e deixava sair o velho e bom clássico Rock and Roll. Led Zeppelin, Doors, Black Sabbath, Jetro Tull. Brande se sentia o dono no boteco. Há quem achava que ele era mesmo.

Nas tardes de sábado, os estudantes de Campo Mourão já sabiam onde ir. Brande transformou o La Paula no ponto de encontro dos mourãoenses. Todos carentes de pai e mãe. Era uma festa. Som alto, mesas na calçada, cerveja, whisky. Conversas sobre tudo. Piadas aos montes. Conflitos políticos. Conversava-se sobre qualquer coisa. Brande sempre estava no meio de todas as rodas. Ele era autêntico. Sempre com suas calças jeans surradas. Camisetas comuns, tênis, cabelos por pentear. Usava como chaveiro um abridor de cervejas. Brande não tava nem aí.

Parece ontem. A cena de Brande no bar é difícil de esquecer. Ele sentava numa cadeira de lata. A encostava na parede, sobre a calçada. Acendia o seu Marlboro vermelho. Muitas vezes tirava a camiseta. Colocava a mesa quadrada em sua frente. Apanhava uma garrafa de cerveja. A degustava aos poucos, naqueles antigos copos americanos, como se fosse a última de sua vida. Era até gostoso de ver. E ali, daquele modo, foi conquistando amigos e colegas. Brande, definitivamente, era o rei do La Paula.

Nunca foi um cara de muitas mulheres. Os amigos lembram de apenas duas. Ainda em Curitiba namorou uma garota de Campo Mourão. Foi completamente apaixonado por ela. O amor era recíproco. Mas um dia, Brande conheceu uma outra moça. Ele havia pulado o muro. Passou a esconder o relacionamento da primeira. E a primeira, da segunda. Organizou um triângulo amoroso jamais visto. Uma confusão amorosa. Nem Nelson Rodrigues escreveu melhor.

Mas um dia a casa caiu. Uma soube da outra. A outra soube da uma. Brande estava “esnucado”. Foi então que levou as duas ao seu apartamento e, entre gritos e xingamentos, ele falou mais alto: “Ou fico com as duas ou fico sem ninguém”. Segundo contam alguns amigos, Brande conseguiu ficar com as duas. Por pouco tempo, é verdade. No final, acabou sozinho novamente. Mas ele não ligava. Ainda tinha o bar, os amigos e o álcool.

Nas épocas de férias, Brande seguia ao litoral catarinense com sua Parati preta e com os amigos. Ele tinha um grupo de bons companheiros de farra e de coração: ARROTA. E era com eles as melhores festas. Brande largava o carro de dia, em frente de onde iria beber à noite. Quando chegava à noite, o carro já estava estacionado, com cerveja gelada em seu interior. Talvez este tenha sido outro plano de vida: premeditar suas festas.

Embora não tenha sido um grande colecionador de amigos – dava pra contar quantos caras ele chamava de “Brother” -, Brande jamais teve alguma espécie de inimizade. Os jovens de sua idade faziam questão de falar com ele. Dava risada a torto e direito. Poucas vezes alguém o via triste. Uma de suas características era o beijo. Recebia todos com uma beijoca no rosto. Queira ou não. Era extremamente carinhoso com os chapas. Brande queria mesmo era viver em paz. Sem pressões, sem compromissos, sem rituais da sociedade.

Em 1993, Brande se formou na universidade. Permaneceu um tempo ainda na capital. Mas logo voltou a Campo Mourão. Lá, ele seguiu com a profissão por alguns anos. Também ajudou a família nos negócios deixados pelo pai. E falando no pai, uma tragédia mexeu com a sua cabeça. Em 2001, uma briga doméstica entre os pais culminou na morte do pai, José Perdoncini. Ele morreu aos 72 anos com um disparo acidental. Brande estava em casa no momento. Mas disse que dormia e nada ouviu. O pai tinha histórico violento, tanto com Brande, quanto ao resto da família.

Dizem que ali Brande decidiu optar por um caminho sem volta. Abdicou da vida rotineira e buscou mais e mais as mesas de bar. Parou de trabalhar e chutou tudo pro alto. Afinal, não queria estar preso em uma cela com grades de ouro. Sua existência estava traçada. Bar, cigarro, álcool, e conversas descompromissadas. Ele escolheu. Ele viveu. Ele morreu. Jamais fez mal a alguém. Fez mal apenas a ele. E ninguém pode julgá-lo. Pelo que se sabe, nunca deveu nada a qualquer pessoa. Jamais pediu algo a alguém.

Seu modo de vida agora já o isolara dos verdadeiros amigos. É que ninguém mais tinha aquele ritmo. Todos já estavam casados. Trabalho, filhos. Enquanto cuidavam de suas vidas, Brande tava logo ali, ao lado, sentado numa mesa de boteco. Ele bebeu o que podia. O problema é que não se alimentava. Nenhum organismo aguenta. Apenas bebia e fumava. Perdeu muito peso. Passou a ter problemas com o fígado. Mas ainda assim, não largava o bar.

Mais recentemente, em 2019, recebeu a notícia de um câncer na garganta. Mesmo com dificuldades em falar, ele ainda dava suas gargalhadas de sempre. Foi diagnosticado e submetido a quimioterapia. Mas foi o pior dos pacientes. Resistia em fazer as sessões. Ia um dia, noutro não. Sua saúde foi piorando e o tumor o agredindo. Mesmo bastante doente, Brande não foi hospitalizado. Odiava hospitais. Preferiu ficar em casa, perto da família. Em sua breve estada na terra não casou. Não teve filhos. Decidiu pela boemia.

Brande foi enterrado no dia 18 de fevereiro de 2020. Eram quase 11 da manhã. Numa cerimônia simples, poucas pessoas presentes para um sobrenome tão influente na cidade. Uma salva de palmas foi dada. Quase nada a quem semeou alegria no pouco tempo de vida. Era um dia de céu azul. Calor beirando os 30. O caixão foi colocado devagar num túmulo profundo. Profundo como o silêncio que se seguiu adiante. Ali ficou o corpo, numa paz, enfim, sempre almejada por ele. Brande era um mito. Agora é lenda.