A luta e sobrevivência de Maria

Maria nunca teve uma vida fácil. Nasceu pobre, nos rincões da Bahia. Lá, num ambiente árido, a necessidade em sobreviver falou mais alto. E foi assim, sempre. Ainda menina, ela se casou com Salvador. Já faz mais de 40 anos. Com ele, foram 12 partos. De todos, dez vingaram. Dois filhos morreram ainda recém nascidos. O casal jamais teve carteira registrada. Viviam de bicos, na escassa agricultura local. Cansados e famintos, acabaram num acampamento de pessoas à procura de terra. Depois de dez anos, conseguiram uma pequena propriedade. Foi a salvação.

Maria Pereira, hoje, aos 62 anos, sabe, verdadeiramente, o significado da palavra fome – uma invenção humana, resultado de conjunturas econômicas equivocadas. Ela sentiu no coração, não ter nada para saciar a fome dos dez filhos. Possivelmente, seja o sentimento mais cruel, o de uma mãe não poder alimentar sua prole. “A gente morava sob uma lona. Doze pessoas. Por algumas semanas, sem dinheiro, não tinha nada pra dar a eles”, disse a mulher, ainda angustiada em retornar as lembranças. 

Ela conta que o casal pouco estudou. Maria possui apenas a primeira série do fundamental. Foi o suficiente para aprender a ler e escrever. Sem estudos e, num ambiente improvável ao emprego, viraram trabalhadores braçais. Colhiam mandioca, milho, cana de açúcar. A grana era diária, paga pelo serviço. Não dava pra nada. Ainda mais, com tantas bocas por alimentar. Vendo a situação piorar a cada dia, rumaram a um acampamento dos sem terra. 

A chegada aconteceu nos anos 90. Improvisados no interior de uma tapera, de lona e bambus, a família ali permaneceu por quase 15 anos. Enquanto o governo prometia a Reforma Agrária, Maria e Salvador continuavam na labuta, bicos como lavradores. As mãos calejadas de Maria refletem o que a vida lhe ofereceu. Anos e anos com a enxada nas mãos. Durante todo o tempo no acampamento, jamais tiveram luz ou água encanada. Em comum, apenas a esperança em dias melhores. 

Então, em 1998, a família consolidou o sonho da própria terra. São pouco mais de dois alqueires, no município de Formosa do Rio Preto, numa comunidade conhecida como “Pavão”, no oeste da Bahia. Ali, há 22 anos, o casal se mudou com os dez filhos. Num primeiro momento, construíram um puxado de seis por quatro. “Eu, sozinha fiz as paredes. Fazia o barro e o colocava entre madeiras e tabocas”, lembra Maria. Ela se refere as casas de taipa, comuns no Nordeste brasileiro. Juntos, os 12 se espremiam para dormir.  

Trabalhando, agora, na sua terra, a família plantou de tudo, um pouco. Além disso, também conseguiu criar animais. Com a grana que começava a sobrar, iniciaram os planos de construir uma casa maior. “Tinha mês que comprava dez tijolos. Outro 20. E assim foi indo”, disse Maria. Mesmo após terminar a obra, energia elétrica mesmo, veio somente depois de dez anos. Até lá, a turma se virava com o velho candieiro. Até hoje, a residência continua com partes em barro. Uma espécie de lembrança de um tempo doloroso.  

Maria

Mas, se há tempos a casa vivia cheia, hoje, Maria está sozinha. Todos os filhos se casaram e tomaram rumo. Já são 20 netos e dois bisnetos. Até Salvador foi embora. Recentemente, decidiu não querer mais a convivência com a companheira. Ela preferiu não falar sobre o assunto. Mas era notável seu constrangimento. A bem da verdade, depois de tudo o que viveram juntos, será mais uma das armadilhas desta vida? Mais um calo no coração de Maria? 

Sozinha, a mulher não para. Aos fundos da casa, ela passa parte do tempo fazendo farinha de mandioca e de tapioca. Também planta milho, feijão, arroz e um pouco de cana. Mantém um galinheiro e alguns bodes. O que vende, complementa a renda da recente conquista da aposentadoria. Fora isso tudo, é comum a troca de gentilezas entre ela e os vizinhos. Durante a entrevista, um deles deixou dois litros de leite, das próprias vacas. 

Maria é uma baiana porreta. Fala baixinho, quase não se ouve. Conversa pouco com estranhos e acredita muito em Deus. Mas frente aos problemas já vividos, faz questão em mostrar a casa, erguida com muito suor, por ela e o marido. “As paredes eu que fiz”, insiste em dizer. Hoje, ela possui geladeira, tv e até internet. Com os filhos, conversa através do “zap zap”. Uma mulher que aprendeu a se virar com a tecnologia. Mas, longe das invenções do futuro, ela ainda mantém hábitos do passado: a velha e boa cachaça. Segundo uma das filhas, ela toma ao menos, duas doses diárias. Sem nenhum problema. Aliás, nenhum problema. A saúde de Maria é impecável.       

Silvanira

Mas enquanto o dilema entre Maria e Salvador não se resolve, ela vem recebendo a visita dos filhos. Na última semana, Silvanira, a de 37 anos, ficou 15 dias por lá. “Vim botar a casa em ordem”, disse. A preocupação não é à toa. A mãe está sozinha. “Meu pai não sei por onde anda. Então vim conversar com os vizinhos pra dar atenção a ela”, disse. Silvanira mora em Bom Jesus da Lapa, quase 300 quilômetros de Formosa do Rio Preto, também na Bahia. 

Ao lado da mãe, também mostra uma vida de sofrimentos. Ela lembra quando criança dos momentos em que nada tinha para comer. Certo dia, voltando da escola a cavalo, com outros três irmãos, avistou um tatu. Sabendo que a mesa estaria vazia, decidiram apanhar o bicho. “Ele entrou num buraco. Então ficamos horas até conseguir pegá-lo”, disse. Quando retornaram, já à noite, quase apanharam. Os pais estavam preocupados com a demora. “Mas quando mostramos o porquê, eles ficaram felizes. Comemos o bichinho”, disse.  

Além de vivenciar a fome, Silvanira é também viúva da violência. Conta que há cerca de dez anos, perdeu o marido. “Ele era parecido com um traficante da cidade. Tinha até cabelos compridos, como ele. Um dia entraram na minha casa e o esfaquearam. Caiu morto. Morreu de graça”, disse. Segundo ela, o companheiro foi morto por engano. Com ela, deixou dois filhos. E um terceiro, só dele. “Eu tinha o menino como meu próprio filho. Mas ele também morreu um tempo depois da morte do pai. Estava de bicicleta quando um carro o atropelou. Sinto a sua falta”, revela. 

Região

Formosa do Rio Preto está localizada no extremo oeste da Bahia. É o município mais distante da capital, Salvador, a 1026 quilômetros de distância. Com população de 25 mil habitantes, divide as estações do ano entre o verde, do período das chuvas, e o marrom, da seca. “No inverno isso aqui é muito triste. Tudo é seco”, diz Silvanira. A vegetação local é predominantemente de cerrado. Recentemente, muitas áreas próximas começaram a receber a soja. São fazendas enormes que, retiraram a vegetação natural, para iniciar o ciclo da oleaginosa. O cenário está mudando.

A casa, feita com tijolos e barro, agora acolhe apenas Maria.