Moisés caminhava pela estrada perdida

Entre 2000 e 2004, Moisés viveu num universo paralelo. Morando nas ruas, foi adotado por traficantes da “cracolândia”, na área central da grande São Paulo. Dependente do crack, viveu como a um zumbi. Quase não dormia. Permaneceu seis meses sem um único banho. Com cabelos cumpridos drag, mantinha uma colônia de piolhos. Por fim, com lodo no couro cabeludo, teve que raspar tudo. Com o tempo, se aproximou do tráfico. Virou aliciador e, mais tarde, uma espécie de contador. Ajudava a contabilizar não só o movimento, mas também a própria desgraça.

Moisés tem hoje 39 anos. Também possui um nome bíblico bastante sugestivo. Mas isso não foi o suficiente para impedir que a vida o levasse ao inferno. Nascido em 1982, em Mauá, ABC paulista, viveu os dramas de uma família cercada pela violência. O pai bebia. E chegava em casa quase sempre alcoolizado. Pior à mãe e aos três filhos, que pagavam a conta da brutalidade.

O menino cresceu. E aos oito anos passou a ser alvo de abusos sexuais. Ao mesmo tempo, iniciou uma caminhada quase sem volta. O pai, segundo ele, pedia que fosse ao bar comprar uma dose de cachaça. Na volta, a curiosidade acabou por decretar o início de tudo. “Eu vinha tomando aquilo. E dizia a ele que havia caído”, disse.

Também começou a fumar. A mãe, segundo ele relatou, pedia que acendesse o cigarro a ela no fogão. O hábito virou ritual. E o ritual um prazer. Por vezes, com a mãe sem grana, era obrigado a catar bitucas na rua. Não prestou. Passou a fumar as maiores. “Mesmo com os exemplos da minha mãe e do meu pai, não os culpo de nada. Sempre tive o livre arbítrio”, disse.

No verão de 1992, uma tragédia na família transformou o pai. Morando na encosta de um morro, ainda em Mauá, chuvas intensas provocaram a queda da casa de cima. O imóvel desabou sobre a de Moisés. Ele dormia na mesma cama ao lado dos dois irmãos mais novos. Quando acordou estava sob entulhos, terra e muita madeira. Era madrugada. Aos poucos ouviu os gritos do pai. E, quando conseguiu pedir socorro, foi encontrado. Foram dez dias no hospital.

“Possivelmente foi um aviso divino. Dali em diante meu pai se transformou. Passou a ir à igreja. E virou outro homem. Não havia mais violência em casa”, disse Moisés. Mas, se em casa as coisas melhoraram, nas ruas o seu lado mais doentio era evidenciado. Aos 13 foi convidado por um amigo do bairro a ir até sua casa. Era véspera de Natal e lá um churrasco teria sido prometido. Mas ao invés da carne, o que encontrou foi o crack. Conheceu. Fumou. Nunca mais parou.

Agora, dependente da droga, conviveu com a família somente até 2000. Ano em que traçou a própria independência. Não a financeira. Mas a pessoal. Então, sem rumo, caminhou até a cracolândia. E lá, fez do abismo, o próprio lar. “Sempre fui traumatizado com os abusos sofridos. Em 2004, depois de quatro anos vivendo como um zumbi, decidi viver sozinho, longe das pessoas. Deixei São Paulo e ganhei as estradas. Virei um andarilho”, disse.

Moisés acabou nômade. Trilhou a própria jornada, sozinho. Mas dois anos depois, já em 2006, decidiu voltar à sua casa, em Mauá. Lá, não encontrou mais o pai. Soube que havia morrido anos antes. Também não encontrou a mãe. Ela havia se mudado ao interior de São Paulo e vivia sozinha. Mas encontrou um dos irmãos, também “noiado” no crack. Foi a pior coisa que poderia ter acontecido.

Na casa, ainda da família, tudo estava como antes. Camas, sofás, tvs, aparelhos, eletrodomésticos. Mas juntos, os irmãos optaram for “fumar” toda a mobília. Sem dinheiro, o jeito para se drogar foi trocar os itens pelas pedras. E tudo desapareceu. “Teve um dia que não tinha mais o que trocar. Então retiramos todas as janelas de ferro. Deixamos só no tijolo. E as vendemos no quilo da sucata”, lembrou. Nada escapou da fúria do vício. Dias depois descobriram um fio subterrâneo sob a casa. Puxaram todo ele. E depois venderam o cobre.

Vivendo agora num imóvel fantasmagórico, sem nada, sem janelas, os irmãos acabaram se separando. E nunca mais se viram. Dali em diante, Moisés viveu o próprio mundo, só. A pé, apenas com uma mochila nas costas, percorreu quase todo o país em busca de algo não encontrado, até hoje. De acordo com ele, foram mais de dez mil quilômetros na estrada, andando pelos acostamentos. Carregava um pequeno cobertor, camisetas, além de apetrechos de artesanato.

No caminho jamais passou fome ou sede. “A solidão era a pior parte. Mas me habituei a conversar comigo mesmo. Falo sozinho e isso me ajuda”, disse. Caminhando sem direção, acabou detido por uma tentativa de furto. Tentava levar duas garrafas de whisky. Deu tudo errado. Foi preso. E se o abismo já era profundo, conseguiu cair ainda mais.

Em liberdade, voltou à estrada e buscou ajuda em pelo menos 20 casas de recuperação. Não teve êxito em nenhuma. “O problema não são as casas. Sou eu. Sei que a cura está na minha cabeça. Mas infelizmente, ainda não consegui encontrá-la”, revelou. Até poucas semanas, morava num abrigo de passagem – construções em concreto à beira da rodovia para abrigar pessoas à espera de ônibus. Hoje, Moisés se encontra abrigado mais uma vez. Ele chegou a Campo Mourão há duas semanas. O seu estado era, novamente, descrito como a de um zumbi. Não é exagero dizer que se assemelhava a um farrapo. Um trapo humano desconstruído pela droga.

Quem estendeu a mão foi Adão. Um pastor barbudo, que anda de bermudas e sempre disposto a ajudar. Na sua casa, a comunidade “Salvando Vidas”, Moisés foi recebido. Tomou banho, ganhou roupas novas e recebeu a palavra da salvação. Ele está feliz. De uma certa forma, nada é novo. Mas a esperança renasce a cada dia sem o uso químico das pedras. Já são duas semanas “careta”. “Acredito muito em Deus. Sei que ele está do meu lado. O que falta é eu acreditar mais em mim”.

Moisés é um sujeito pacífico. Faz mal apenas a ele mesmo. Estudou somente até a sexta série, embora mantenha um excelente vocabulário. Tem duas tatuagens. Fala bem e expõe o próprio drama de forma serena. A verdade é que, explanar seu tormento, é de alguma maneira, uma espécie de terapia. Talvez até, um espelho. Onde consegue enxergar no que se transformou. Buscar as saídas é agora o seu destino.