Na UTI Covid, os últimos pedidos

Prestes a serem intubados, vítimas da temida Covid 19, revelam sua maior fragilidade: o medo diante da morte. Sem a certeza da volta, muitos fazem seus últimos pedidos. Às vezes à família, outras, aos profissionais da saúde. Não há tempo para mais nada. Aqui, dinheiro não tem valor. Ele não salva. Os apelos são ouvidos com muito carinho. Pedidos de desculpas. Envios de senhas bancárias. Preocupações com a família. Uma última refeição. Ou simplesmente, a clemência por não permanecerem sozinhos. E eles não têm outra saída. Estão “condenados” a enfrentar a luta pela vida, distante do que mais amam: suas famílias.

Os últimos pedidos tiveram início há um ano, desde a chegada do vírus. Os relatos a seguir aconteceram na UTI Covid da Santa Casa de Campo Mourão. Todos os profissionais ouvidos não suportaram a dor em revelá-los. E choraram por diversas vezes. Para eles, é um cenário devastador de tristezas. Gente indo embora antes do ciclo natural. Sem tempo de se despedirem. Ou concluir seus desejos terrenos. Uma luta desleal, entranhada agora, pela política.    

Aos 34 anos, Ester Campos Ribas é bem mais que uma Técnica de Enfermagem. Se há um ano, atuava no setor de Endoscopia da Santa Casa, agora, vem compartilhando a guerra da pandemia, na ala da UTI Covid. E não tem sido nada fácil. Conta que fora do hospital, é discriminada. “Algumas pessoas acham que nós levamos o vírus. Já passei por várias situações discriminatórias”, disse. É uma espécie de “Lepra social”, quando as pessoas, erroneamente, passam a fugir de quem mais cuida delas.

Na verdade, a população não faz ideia do que Ester enfrenta em seu dia a dia. Ali, diante dos vários leitos da Covid, vivencia dor, angústia e sofrimento. Todos os dias, há um ano. E sim, nos momentos de alta hospitalar, as sensações são as mais impressionantes. “Não temos como explicar a alegria em ver um paciente voltando à vida”, revela. A Técnica de Enfermagem é uma guerreira. Além de ajudar a salvar vidas, deixou de abraçar a própria filha por sete meses. Tudo, para salvar vidas. Ou melhor, uma vida. 

Ester conta que, antes da intubação, às vítimas da doença passam a ser como membros da sua própria família. “Nos apegamos muito. Não há como fugir disso”, comenta. E é neste momento, com humanos à beira do abismo, que revelam seus últimos desejos. Recentemente, um homem de 58 anos foi encaminhado à UTI. Antes de ser intubado, clamou a Ester que não o deixasse sozinho. “Ele dizia que não conhecia ninguém no hospital. Estava com medo. Medo de morrer. Por várias vezes me pediu que não o deixasse. Este foi o seu último desejo”, disse.

Dias depois, com o estado agravado, a esposa quis vê-lo. E assim aconteceu. Mas naquele instante, em frente a companheira de toda a vida, ele morreu. Nos momentos antes de ser intubado, Ester lembra de ter recomendado tranquilidade. “Dizia a ele que cuidaria. Que ficaria ao seu lado. Mas ele se sentia sozinho. Estava com medo”, disse. O paciente permaneceu internado por duas semanas. Mesmo tendo toda uma vida pela frente, o vírus determinou abreviar sua caminhada.

Num outro caso, Ester lembra de um paciente de 47 anos. Intubado, melhorou. E saiu da sedação. Por alguns dias, acordado, manteve uma aproximação sem igual com ela. “Ele me mandou um beijo. E quase sussurrando, agradeceu por ter cuidado dele. Ficado ao seu lado. Revelou para que não o deixasse”, lembra. Mas isso não foi o suficiente. Estrategista, o vírus retomou as rédeas, e levou o paciente. A luta pela vida somou 40 dias. E ela foi perdida.

“Somos impotentes. Estamos com o psicológico abalado. Mas, diante de tudo que vemos numa UTI, sentimos a necessidade de amar o próximo. É por isso que não acreditamos quando vemos aglomerações, festas. Nenhum dinheiro vai te trazer de volta. É preciso amar o próximo, e não disseminar o vírus”, diz Ester. Ela não se conteve em lágrimas. Durante a entrevista, chorou por vários momentos. O vírus, mais uma vez, tomou as rédeas. Este repórter, nem ao menos pode lhe consolar com um abraço, ou um carinho com as mãos.

Psicóloga da Santa Casa, Ana Maria Ribczuk, conta que há alguns dias, uma paciente também fez seu último pedido. Já com os sintomas da Covid, ela acabara de dar à luz ao filho. Mas, debilitada após o parto, seguiu à enfermaria. Lá, pediu para amamentar o recém nascido. Horas depois, foi separada do bebê. Subiu a UTI, onde foi intubada. Aquela foi a primeira e também última vez que amamentou. Ela morreu dias depois.

Um homem, na faixa dos 68, sem tempo para se despedir da família, clamou aos profissionais da saúde. Pediu para que dissessem a esposa que se desculpava pelos seus erros. Na verdade, um último pedido de perdão. Ele sabia que ali, prestes ao embate com a morte, somente a humildade em reverenciar o bem maior de um humano: a família.

Aos 80 e poucos, uma paciente teve um último desejo bastante inusitado. Antes de ser sedada, pediu aos médicos para receber sua última refeição. Sim, era um frango caipira com muito molho, feito por uma prima. O corpo clínico atendeu o pedido. A comida veio, saborosa e quente. Para a senhora, a comida dos deuses. Ela comeu tudo. Agradeceu. Depois foi sedada. Após algumas semanas, se despediu. Aquela, havia sido mesmo a sua última refeição.

Através de vídeo chamada, pelo celular, um paciente pediu para contactar a esposa. Disse que trabalhou a vida toda para dar uma boa vida à família. E conseguiu. Revelou que, com os recursos economizados no banco, era para continuarem a vida honesta. Seguirem a jornada, agora sem ele.

Com 70 e poucos, um homem pediu para comer três pequenas bolachas de água e sal. Ele fora avisado sobre a intubação. Mas sentiu o desejo naquele singelo alimento. A enfermeira atendeu o pedido. “Segundo ela, o senhor comeu com tanta vontade que ela também ficou com a mesma vontade”, disse a psicóloga. Antes de ser sedado, foi colocado em vídeo chamada com a esposa. “Aqui tá esquisito. Não sei não. Cuida de tudo por aí”, teria dito à companheira. Ele não resistiu.

Fernanda Chinaglia, é chefe de enfermagem da UTI Covid da Santa Casa. Ela estava brutalmente abalada, psicologicamente. Tinha prometido à uma esposa, que pudesse visitar o marido, intubado no hospital. Mas entre o comunicado e a sua vinda, o esposo não aguentou. “As famílias também nos fazem pedidos. Salvar, cuidar, zelar. É um fardo imensurável você não conseguir atender a todos. Nós fazemos de tudo. Mas às vezes, não conseguimos”, revelou.

Até ontem, 129 pessoas morreram em Campo Mourão, vítimas da Covid. Em todas elas, possivelmente, houveram os “últimos pedidos”. Eles representam a brevidade da vida, principalmente, diante de uma doença ainda não compreendida. Talvez seja um recado, como se ouviu nos corredores do hospital. Fazer hoje o que se faria amanhã. Amar agora. Realizar vontades. E pedir perdão, reconhecendo os erros, o mais rápido possível. A vida espera. A morte, não.

VEJA TAMBÉM:

>> Circo instalado há mais de um ano faz “malabarismos” para se manter