A breve vida de Ênio Maciel

Nos anos 90, o radialista Ênio Maciel andava pela cidade com um Kadett Ipanema da Rádio Colmeia. O carro era a conhecida unidade móvel. Na época, já fazia transmissões ao vivo. Mas ao invés das redes sociais, como hoje, era pelo rádio mesmo. Naquele dia, se deslocou para cobrir uma ação policial. Mas o que seria uma simples cobertura, se transformou num inferno. Numa guerra urbana. Com o veículo estacionado, quando viu, estava em meio a um tiroteio. Então, com o espírito de um verdadeiro profissional da imprensa, deitou o banco e iniciou a narrativa dos disparos. Quem ouviu ao vivo, descreve a transmissão como um ícone. Até o assovio das balas era ouvido. Coragem jamais faltou a Ênio. Era, certamente, uma de suas principais virtudes.

Dono de uma personalidade única, Ênio deixou um enredo de boas histórias. Exemplos a serem lembrados. Começou a carreira na Rádio Colmeia, em 85, ainda aos 17 anos. É como o ditado: a fruta não cai longe do pé. Sua mãe, Elza, foi a primeira gerente da rádio na cidade. Nascido em 1968, começou como operador. A dedicação foi tanta que, passados seis meses, já tinha o próprio programa. Uma espécie de disk jóquei do rádio. Um tempo em que não existiam ainda as FM´s. Somente as AM´s. Mesmo assim, tornou a própria programação nos moldes de uma FM. Era apenas o início de uma promissora turnê da profissão.

Ênio era conhecido por ser um homem de família. Com seu jeitão simples, mas sempre objetivo, não tinha freios na língua. O chamado “bocudo”. De certo modo, chegava a ser uma espécie de incontinente verbal. E foi assim que criou e educou os quatro filhos. Como pai, mostrava os caminhos. E ainda corrigia a turminha. Principalmente, quando um deles pisava sobre a linha do limite. Ele sempre foi assim. Não admitia erros.

Elio, um dos irmãos de Ênio revela ter tido um bom amigo. Um parceiro que sempre estendia a mão a quem dele precisasse. Era um sujeito alegre, divertido e bom no que fazia como profissional. “Era bem família mesmo. Um ótimo pai que soube educar os filhos com muito carinho e dedicação. Avô extremamente carinhoso e também rígido (sem jamais ser agressivo). Por isso era adorado pelos filhos e netos”, lembrou.

Insuportável torcedor do Inter gaúcho, Ênio se dizia ateu. Mas da maneira dele. Conta o irmão que ele despejava espiritualidade. Afinal de contas, sempre que podia ajudava as pessoas. “Respeitava cada um na sua essência. As admirava como elas eram, assim como as escolhas que faziam. Ele tinha fé nos homens, no ser humano. Acho que tinha só preguiça de ter compromisso em rezar ou ir às missas”, brincou Elio.

Ênio era o caçula de 12 irmãos. De família respeitada e tradicional de Campo Mourão, teve orgulho da caminhada dos pais e dos irmãos. Nunca foi rico. Ganhou a própria grana no suor. No esforço de cada um dos seus poucos dias de vida. Além de traçar uma sólida caminhada nas rádios, ainda foi D´J e, por fim, empresário de uma pequena loja de CD´s. Com a severa crise econômica da pandemia, ele deixou o ponto no centro. Se safou do aluguel e passou a se instalar num cômodo, construído por ele mesmo, em sua casa.

Segundo um amigo, financeiramente, Ênio não tinha quase nada. Principalmente, em decorrência da pandemia. “Nos últimos anos, devido a este recesso, o movimento da loja caiu muito. Mas, mesmo sem grana, o coração era gigante. Há alguns meses um sorveteiro passou em frente à casa dele, no Ilha Bela. Tentando vender seus picolés, revelou a Ênio que não tinha nada em casa. Para ajudar o cara ele comprou R$ 50,00 pilas em sorvetes”. Era a tal espiritualidade. A fé nos homens.

Amigo de longa data, o radialista Jarutais descreve ter tido um irmão verdadeiro. “Neste ano de 2022 andamos nos encrespando um pouco por causa da política. Ele batia no Bolsonaro, mas dizia que não era petista. Daí dava encrenca, sempre sadia. Mas depois rachávamos o bico, como ele mesmo dizia”, disse.

Jarutais o descreve como o seu grande e já saudoso amigo. Um parceiro e torcedor do mesmo time. Era um camarada “gente fina”. “Um cara inteligente, sarrista, gozador, brincalhão, um bom pai, um ótimo avô. Era também um jogador de futebol aguerrido. Pra ele não tinha bola perdida. E campeonato era bola pro mato”. Segundo ele, já fazia alguns dias que não o visitava, principalmente, pra comer um churrasco ou tomar umas “Bavárias”, a cerveja preferida. “Preferi não ir ao velório e nem ao enterro, pra ficar com a última lembrança boa dele”, afirmou Jarutais, que chorou em seguida. E, ainda perplexo com a partida do amigo, revelou: “Acho que eu devia ter ido me despedir dele…”.

Há alguns meses, Ênio demonstrou uma profunda tristeza nas redes sociais. Jarutais lembra que eram escritos que remetiam a depressão e cansaço de viver. “A gente ficava preocupado. E ele estava sozinho, tinha saído do último relacionamento. Após a separação, andava meio tristão. Daí, a poucos dias, começou a namorar de novo. Ele remoçou, rejuvenesceu. Tava um guri”, lembrou.

Amigos também revelam que o gênio do Ênio não era dos mais fáceis. Nas redes sociais não media consequências. E, por esta razão, tinha gente que não gostava dele. Alguns viam em suas postagens, conteúdos fortes, ácidos. A bem da verdade, era um sujeito reto, direto. A prosa não fazia curva. Talvez, por isso, três relacionamentos não deram certo.

Correto na maior parte de suas atitudes – ninguém acerta tudo -, certo dia ficou com pena de um sujeito que pedia ajuda na rua. Era um dia de extremo frio. Vendo o drama do camarada, tirou a própria jaqueta do corpo e a entregou. Deu de presente. Mas, ao saber, dias depois, que o mesmo havia a trocado numa boca de fumo, foi atrás para tentar recuperar. Era tarde demais. Nunca mais viu a jaqueta. Há pouco tempo, Ênio iniciou uma nova jornada amorosa. E estava muito feliz. Ainda no hospital, preocupado com o próprio destino, disse a ela: “Peça para Deus deixar eu voltar. Quero viver mais com você”. Mas ela não foi ouvida. Ênio não voltou.

Ele morreu na madrugada do dia 9 de dezembro, aos 54 anos. Foi internado às pressas por complicações em um procedimento bariátrico, realizado há 17 anos. Se submeteu a uma cirurgia para também tratar de uma hérnia na barriga. E ficou em estado gravíssimo. Em seguida, sofreu uma parada cardíaca. Não resistiu.

Na curta jornada de Ênio, pode-se afirmar que manteve duas verdadeiras paixões no plano terreno: a família e o futebol. Fanático torcedor do Inter, não perdia um só jogo. Fosse bom ou ruim o time. Muitos dos seus amigos foram conquistados pela própria bandeira do clube. E o amor infinito ao time e, até, por vezes incompreendido, fez com que a família realizasse seu último desejo: ser enterrado vestindo a camisa e, ao lado da bandeira do Internacional.

Irineu Ricardo, amigo de Ênio desde a adolescência, também está emudecido com a sua breve partida. Ao seu lado, participou de muitas histórias. Mas tem certeza de que está bem. Para ele, a boa viagem sobre o mar só acontece após a preparação de uma boa embarcação. E Ênio, definitivamente, cuidou de todos os preparativos. Teve uma viagem segura. E como diz a canção, “agimos certo sem querer. Foi só o tempo que errou. Vai ser difícil eu sem você. Porque você está comigo o tempo todo”. E quem pode afirmar que o tempo não erra?

Ênio com filhos e netos em momento de descontração, em sua casa
Ajudar o próximo era uma de suas virtudes, na foto, Ênio de bicicleta, indo comprar um botijão de gás à vizinha