Como uma ilha, Cleiton está sozinho

Cleiton nunca teve ninguém. Vive só, como uma espécie de ilha, em meio ao nada. E sempre foi assim. Nasceu ao mesmo tempo em que a mãe, Ana, morria. Ela teve complicações no parto. E não resistiu. A história dela terminou ali, junto ao nascimento do filho. Os dois não se conheceram. Vindo ao mundo, a criança não tinha pai ou irmãos. Tias ou tios. Vô ou vó. Assim teria sido contado. Entregue a um orfanato, não teve a sorte da adoção. Entrou ainda bebê. Quando saiu, já era um homem. E permaneceu adulto, até os 26, na mesma instituição. Hoje, aos 37, Cleiton continua só. Mas agora, nas ruas. 

Definitivamente, o destino jamais lhe estendeu as mãos. Tudo foi e continua sendo difícil. Mas ele não desistiu. De nada. Conta que cresceu frente as disciplinas religiosas de freis do instituto, em Tietê, no interior de São Paulo. E agradece por isso. Lá, concluiu o segundo grau e pegou apreço pela educação cristã. “Acredito muito em Deus”, diz. Ainda jovem, lembra das vezes em que outros órfãos recebiam visitas. Enquanto ele, não. 

Era um sentimento de mágoa, de certa forma, angustiante. Principalmente, em datas como o Dia dos Pais ou das Mães. Cleiton revela que até hoje não sabe o gostinho do amor de mãe. Ele nunca teve isso. “Ganhávamos presentes e brinquedos. Era muito bom. Mas ter minha mãe por perto, eu jamais pude ter. Eu não sei o que é isso”, disse. 

Cleiton diz que deixou o orfanato já empregado. Trabalhou por oito anos numa fábrica de cimento do interior paulista. Mas a empresa fechou. Com uma grana no bolso, ele realizou o antigo sonho: ir em busca de suas raízes. Então, sabendo que a mãe era cearense, se enfiou num ônibus e passou dois dias até chegar a Barbalha. Lá, iniciou uma investigação pelo passado. O seu próprio passado. 

Foram quase dois anos no interior do Ceará. Enquanto procurava familiares, arrumou emprego. Na construção civil, aprendeu o ofício de servente. Mas, como jamais encontrou pistas da família, decidiu retornar ao Sul. Antes de partir, soube de um novo serviço, desta vez em Porto Rico, no Paraná. Comprou passagem e lá desembarcou. Então, deu a cara e conquistou o emprego. Tudo ia bem. Mas a pandemia apareceu. Assim como ele, o vírus também deu as caras. O emprego acabou.

Sem rumo e sem dinheiro, Cleiton necessitava de ajuda. Ele também estava sozinho, como sempre. “Me disseram que em Campo Mourão havia uma casa de passagem, que ajudava as pessoas. E me dispus a ir até lá”, disse. O jeito encontrado foi percorrer o trajeto a pé. Foram dias andando pela estrada. Passou calor, frio, fome e medo. Cleiton, agora, estava em situação de rua. 

Carregando duas pequenas bolsas, parou num posto de combustíveis. A ideia era pedir comida e descansar. Conseguiu apenas a última. “Eu estava com muita fome. Mas a comida me foi negada”, lembrou. Faminto, ele descansou as pernas, tomou água e rumou novamente à rodovia. Comeu apenas no dia seguinte, ajudado por uma outra pessoa. “Eu tenho vergonha em pedir. Aprendi que as coisas vêm com o trabalho”, afirmou. Cleiton explica que ele não é uma pessoa em situação de rua. Ele apenas, está em situação de rua. Mas as coisas, segundo ele, vão mudar.

Ao todo, foram 82 quilômetros a pé. Para ele, o maior sofrimento foi a sede. Nem mesmo a fome doía como a falta de água. Só quem percorre o trecho pode explicar. Durante as noites,  até pensou em dormir em abrigos de passagem – pontos de ônibus em concreto instalados às margens da rodovia. Mas o medo falava mais alto. “Tinha medo de alguém passar por ali e me agredir ou tacar fogo”, disse. Então, dormia em cantos precários de postos da estrada. Até alcançar o destino, perdeu cinco quilos. 

Chegando em Campo Mourão, foi até a casa de passagem. Lá, foi bem recebido pelos freis franciscanos, da Ordem, O Caminho. Recebeu roupas, banho, comida, uma cama. E o mais importante: respeito e compaixão. Durante as tardes, Cleiton buscou trabalho. E conseguiu. Mas descobriu um problema. Sua identidade foi levada com uma das bolsas. Num vacilo, ele deixou as coisas sobre a calçada. Quando voltou, já era tarde. 

“Preciso fazer uma nova identidade para a vaga de trabalho. Para isso, preciso retirar minha certidão de nascimento. Ela custa R$250. Tenho R$100. Falta dinheiro”, explicou. Mas empresário Denir Daleffe o ajudou, fornecendo o dinheiro. Agora, segundo ele, a vida continuará a seguir. Com o documento em mãos, o emprego está garantido.  

Cleiton é um sujeito bastante carismático. Fala bem. É educado. E, sempre, chama as pessoas de “abençoado”. Uma forma de respeito pra que ninguém o leve a mal. A entrevista aconteceu sob a sombra de uma árvore, ao lado da casa de passagem. Cleiton não bebe. Não usa drogas. O cigarro sim, hábito adquirido recentemente. Com ele, apenas uma bolsa pequena, azul. Nela, carrega tudo o que tem no plano terreno: três bermudas, três camisetas, além de objetos de higiene pessoal.     

Empregado, Cleiton pretende fazer o óbvio, como todo ser humano. “Vou trabalhar, alugar uma casa e construir uma família. Pretendo ter o que nunca tive”, revela. E na solidão da vida, talvez agora, Cleiton possa contar com outros humanos. Ele ainda necessita de roupas, como calças e sapatos.  

Serviço

Cleiton está dormindo na casa de passagem de Campo Mourão. Se você pode ajudar, ligue para ele: (44) 99135-7330