Exemplo de vida, Clair venceu a fome

Ele ainda era menino quando saía de casa com a mãe, nas manhãs de sábado. A pé, caminhava quase 12 quilômetros para saciar a fome. Pobre, frequentava o projeto do “sopão”. Uma sopa distribuída a dezenas de crianças necessitadas das periferias de Campo Mourão. O alimento era fartamente oferecido por voluntários. Apenas voluntários. Pessoas de bem, preocupadas em diminuir o flagelo dos famintos. Passado o tempo, cresceu, estudou e é muito respeitado. Apesar de não querer ter o nome revelado, tem muito a agradecer a uma mulher: Clair. Foi ela uma das responsáveis pelo projeto. Dedicou 20 anos de sua vida a alimentar quem nada tinha. Afinal de contas, sempre soube que a fome não é, e nunca foi, uma invenção humana. Por isso decidiu lutar contra ela.  

Clair de Almeida está com 70 anos. Vem sofrendo com o mal de Alzheimer. Sua fiel escudeira é a filha, Simone. Simone é uma freira. Tem amor dobrado pela mãe. Sabe o que ela fez no passado. Então, cuida hoje, para que tenha um futuro tranquilo. Conta a filha que o projeto do “Sopão” começou nos anos 80. Surgiu depois que Clair se deparou com uma criança quase morta por desnutrição. Lucas era o nome do menino. O caso será narrado mais adiante. 

O projeto em si começou na rua em que a família morava. Na Travessa 19 de Dezembro. Clair pedia aos mercados de Campo Mourão que doassem frutas e verduras. E as doações começaram. Durante muito tempo ela ficava em pé selecionando o que seria preparado. Tem varizes por causa disso até hoje. Mas não reclama.   

Com o tempo, funcionários da Coamo aderiram ao projeto. Eles passaram a doar alimentos. Clair, ao lado de outras mulheres da comunidade, fazia os panelões de sopa. Tudo acontecia no Jardim Aeroporto. Era uma época de poucos recursos. A comida era distribuída sob uma mata. Era feita com fogão a lenha. Num barraco improvisado. E atraía mães e crianças humildes de toda a cidade. Todos carentes de comida. Sedentos pelo carinho humano.  Simone diz que a mãe sempre teve satisfação pelo que fez. Era algo de sua alma. Uma necessidade em ajudar. 

Dona Clair

Dona Clair foi casada por 40 anos. Mas um dia o casório terminou. Coisas de humanos. Da relação teve quatro filhos. Simone, a mais nova das meninas, lembra que a sopa acontecia todos os sábados. Na chuva. No sol. No frio ou no calor. Não importava. Juntavam as voluntárias e faziam acontecer. Nas datas comemorativas, como Dia das Crianças, Páscoa e Natal, a festa era ainda mais especial. Gente unida por uma causa. E Clair sempre levantou a bandeira. 

Ela sempre buscou uma vida participativa. O voluntariado. Foi da Pastoral Carcerária. Atuou na Saúde. Fez tudo o que pode sem nunca reclamar. Veio de uma família de agricultores. Vieram das bandas de Guarapuava. Chegaram em Campo Mourão nos idos de 50. A cidade ainda não era cidade. Foram pioneiros. Ainda criança trabalhou como doméstica em casas de famílias tradicionais. E foi numa delas em que conheceu o prefeito da época. Milton Luiz Pereira havia ido visitar os patrões. Quando decidiu ir embora, a menina de atitude o chamou para falar. 

Ela havia feito um pedido. Pediu que, se pudesse, doasse um terreno aos seus pais. Explicou que eram muito pobres. Mas honestos. Trabalhadores. O pai, inclusive, trabalhava na prefeitura. Disse que moravam de favor com uma tia. De acordo com a própria Clair, Milton conseguiu o terreno. Ela agradece até hoje.         

Depois que casou, Clair virou dona de casa. Até então era analfabeta. Muito devota a Deus, anos depois teve ajuda de um afilhado. Ele colaborou com a leitura da bíblia para que ela fizesse suas orações. Anos mais tarde, voltou à escola. Foi quando se alfabetizou. Clair hoje tem sua enfermidade estável. Ela passa os dias em casa. Faz suas caminhadas. E cuida dos cães. Dos pássaros e de suas plantas. Sempre aos cuidados da filha Simone.  

Muitas outras crianças pobres do “Sopão”, ainda lembram da Dona Clair. Tornaram-se adultos. Pais de família. “Aquelas crianças precisavam mesmo daquela alimentação. Quando sobrava na panela, as mães levavam pra casa. Eram pessoas muito pobres”, diz Clair. Ela não sabe quantas ajudou. Mas sabe que foram muitas. E não foi somente com comida. Foi com roupa, medicação, médico, material escolar. “Eu tinha satisfação em ver aquelas crianças tão pobres daquele jeito se alimentarem. Saía feliz dali. Via os doentes melhorarem. Era fome. Fraqueza. Isso me dava força pra continuar”, disse. 

Uma dessas crianças foi Marcos Antônio Thomaz. Conta que em 2000, tinha nove anos quando buscava a sopa com o irmão e um vizinho. Ele lembra de um evento bonito. “A sopa tinha gosto de quero mais. Era feito com muito carinho pela dona Clair”, disse. Marcos teve uma infância de muitas dificuldades. A família era humilde. Não faltava rango. Mas muitas outras coisas ele não tinha. Uma época em que apenas o pai trabalhava. Tempos difíceis. Hoje, aos 29 anos, ele casou. Tem três filhos. É motorista de carreta. 

O caso Lucas 

Década de 80. Um dia, visitando uma família num bairro carente da cidade, viu uma criança caída no quintal. Era o último grau de desnutrição. Os pais diziam que não era nada demais. Que iriam levar o filho a uma benzedeira. Clair contestou. Disse que o menino precisava de um médico. E assim o fez. No hospital, ele ficou internado. Tinha muita desnutrição. Mas depois ficou bom e teve alta. 

“A assistente social, na época, disse que, se criança voltasse à família, poderia estar vulnerável a uma nova desnutrição”, lembra Simone. Então pediu para que Clair ficasse com ela. E aceitou. Pegou amor. Não queria mais devolvê-lo. Lucas, o menino, permaneceu um ano na casa. Como não existe pobreza que tire o filho de um pai legítimo, ele foi devolvido. “Com muito choro ela devolveu”, disse a filha. 

Clair conta que, após devolvê-lo a família, sempre manteve contato. Tinha Lucas como um filho. Dava conselhos. Presentes. Mas isso tudo, de nada adiantou. O menino estava vulnerável a todos os problemas sociais. O pai tinha histórico de alcoolismo. E o irmão, envolvido com drogas. Fora isso, pouca grana na casa. Fruto do desemprego.     

E não tinha outro jeito. A história de Lucas não teve final feliz. Charles Bukowski não escreveria melhor. Anos depois o pai do menino morreu numa briga de bar. O irmão de Lucas se envolveu com drogas e também morreu. Já o menino cuidado e amado por Clair, acabou caindo pela mesma tentação. Foi detido ainda aos 15 anos e mandado ao sistema prisional para menores em Curitiba, ressalta Simone. E ele não passou dos 15. Foi assassinado durante a detenção. Clair, chocada, pagou pelo túmulo. Ele foi enterrado em Campo Mourão. Esse foi o adeus de uma “mãe”. Que sofreu calada sem nada poder fazer.