O sax de Edson se calou

Na última segunda-feira, um homem de 40 anos foi encontrado já sem vida, dentro de sua casa, no Jardim Bandeirantes. Estava deitado de bruços sobre a própria cama. Sentindo a ausência, familiares arrombaram uma das portas. Mas era tarde demais. O corpo pertencia a Edson Aparecido Ferreira, ou apenas “Gordinho”, como ficou conhecido em Campo Mourão. Músico desde os 12, pode ter sido vítima de um enfarto fulminante. Tinha o coração grande demais pra caber no peito, disse um dos melhores amigos, o professor Leandro Moreira. Edson morreu entre domingo e segunda-feira, sozinho, como decidiu viver.

Apaixonado pela música, Edson iniciou ainda menino, na Escola Municipal Manoel Bandeira. Na época, aprendeu a tocar trompete com o maestro Lincoln. Com o tempo, descobriu no sax a verdadeira paixão. Nunca mais parou. Melhor amigo, Leandro conviveu ao seu lado desde menino, quando estudavam juntos. Por ironia do destino, também se tornou músico. Mas ao contrário de Edson, estudou até o fim. Fez faculdade e se transformou em advogado e professor.

Mesmo com profissões, agora, distintas, os dois jamais deixaram de ser amigos. Ao contrário. O tempo os fez mais companheiros. No ano 2000, unidos pela música, moraram juntos em Londrina e em São Paulo. Lá, estudaram e movimentaram a vida tentando uma chance nos palcos. Foi um período bom, de aprendizados e experiências. Mas em 2001, também unidos, optaram em retornar a Campo Mourão.

Edson então passou a tocar em bailes, inserido a bandas locais. Anos depois, os dois formaram a própria estrutura: Banda Influência. Passaram a atuar em festas de casamento e barzinhos. A grana não era lá essas coisas, mas ainda valia a pena, principalmente, quando se fazia o que era apaixonado.

Em 2017, o músico passou a sofrer pela depressão. Como consequência, descarregou o pesado fardo na bebida. Entre os goles rotineiros, as tragadas de cigarro. E elas foram incontáveis. “Ele jamais conseguiu se livrar do cigarro. Sempre fumou muito”, disse Leandro. Preocupado, Leandro e outros amigos o ajudaram. No mesmo ano, buscaram as saídas de emergência no Centro de Atendimento Psicossocial de Campo Mourão (CAPS). Lá, recebeu carinho e atenção. Foi medicado e passou a fazer um tratamento.

Com o início da pandemia, Leandro se preocupou ainda mais. Afinal, se viver de música já era difícil, imagine agora, ser impedido de trabalhar. E não existem soluções ao passado. Sim, “Gordinho” agora estava ao vento. O trabalho cessou e a grana desapareceu. Por fim, o saxofone foi silenciado pelo vírus.

Vendo as dificuldades baterem à porta, Leandro não pensou duas vezes. Montou um grupo de whatsapp com quase 50 membros, todos solidários a Edson. Então, mês a mês, doavam grana, alimentos e outros utensílios ao músico. “Gordinho” não estava sozinho. Ele tinha amigos.

Já em 2021, livre dos remédios contra a depressão, Edson despertou. A tristeza havia ido embora. Surgiu a esperança e a vontade em se reinventar. Ele parou com o excesso da bebida. Bebia, mas em menor volume. Iniciou um projeto pessoal de amor próprio. Passou a aparar regularmente os cabelos. Buscou ajuda em arrumar os dentes. Também projetou um curso de sociologia a distância. Queria uma outra possibilidade de renda para não depender apenas da música – ensinamentos da pandemia. “Ele estava feliz. Tinha sonhos e projetos. Tudo ia bem”, lembrou Leandro. Ele também concluiu o segundo grau e, pela primeira vez, tirou sua habilitação. A moto agora tinha um condutor de verdade.

O músico morava sozinho, em uma casa simples, em frente à casa da mãe, dona Eurids. Nunca se casou. Tampouco teve filhos. Flamenguista roxo, acreditava em Deus. Nos últimos anos, sempre às quartas feiras, os dois amigos se reuniam na residência de Edson. Lá, passavam horas falando sobre política, religião e porque não, de música. Por vezes, oravam. Para ajudar o amigo, Leandro trocou a cerveja por chá de erva cidreira. “Passou a ser tão bom que nunca mais deixamos de tomar o chá”, disse.

Era o irmão mais velho da casa. Depois dele, Marta, 34, e Marcelo, 24. Marta foi aluna de Edson, com quem aprendeu as primeiras notas musicais. Depois ingressou à Banda Municipal. E, a exemplo do irmão, toca saxofone. “Vai fazer muita falta. Era um ótimo irmão. Nos incentivava em tudo”, disse.

Marcelo, o caçula, era bastante apegado a Edson, principalmente, na infância. Mas a vida seguiu, e quando completou os seus 18, passou a apenas trabalhar. Inevitavelmente, o contato diminuiu. Mas não o suficiente para deixar de acompanhá-lo. “Sempre fomos próximos. Mas o trabalho impunha algumas barreiras. Sua falta será muito sentida”, disse. Segundo ele, o irmão o apoiava em tudo o que fazia.

“Gordinho” jamais teve pretensões em ser famoso. Sua luta era apenas sobreviver com a música. Fazia com paixão, mesmo tendo aversão a ensaios. A verdade é que manteve a elegância e fidelidade de todo músico. Era uma figura clássica dos sobreviventes da arte. E, se faturava R$200 por mês, vivia os R$200. Se recebesse R$10 mil, vivia os R$10 mil. Um raciocínio puro e simples. Mas inviável nos tempos de hoje.

“Era uma pessoa com o coração maior que ele. Sensível e com um posicionamento social muito forte”, disse Leandro. Um sujeito de vida extremamente simples, onde puxava o bairrismo dando prioridades ao próprio bairro. Também tinha umas tiradas geniais da realidade mourãoense. Uma espécie de “filósofo de zona”, brincou Leandro. Gostava de assistir a TV local, ler os impressos e não media as críticas. Tudo com bom humor.

Dias antes de ser encontrado morto, Edson mandou um vídeo do cantor Tim Maia a um amigo. Nele, Tim falava em alto e bom tom: “Pare com esta besteira de querer ser músico. Não faça isso. Vá estudar”. Não se sabe os motivos que o levaram a enviar o material. Mas o fato, é que Edson pensava em voltar aos estudos.

Ontem, ainda surpreso, Leandro abriu a Bíblia de Edson. E lá, encontrou uma carta. Era uma carta endereçada a Deus. Uma espécie de “pedido”: “Equilíbrio, sabedoria, esquecer do álcool, do cigarro, amor de verdade, descobrir o amor de verdade. Mandar embora a solidão. Peço a Deus a coragem de viver e de me relacionar com as pessoas. Dar mais orgulho a minha família. Mandar embora essa depressão que vive a me rodear. Não sou do mal, mas eu sinto o mal. Lhe peço Senhor que as pessoas me recebam com bons olhos e que sintam sua presença por onde eu passar… Lhe agradeço e me use também para sua honra e glória”.

“Gordinho” viveu 40 anos. Deixou a mãe e irmãos. Nunca conseguiu juntar dinheiro. Mesmo assim, na batalha dos dias, ficaram dois saxofones e uma moto. No entanto, mais que bens materiais, ficaram as lembranças de uma amizade verdadeira. Um amigo pra todas as horas. E um músico dedicado. Agora o sax se emudeceu. Mas o som permanece na memória.